terça-feira, fevereiro 07, 2012

Livros, felicidade e café




     A música escolhida durante a madrugada fazia jus ao meu humor matinal. Mas já havia um bom tempo que meu despertador não me provocava qualquer tipo de inspiração poética. Por um momento, contudo, meus devaneios habituais pareceram, de certa forma, inoportunos; abandonei-os, pois, sob o travesseiro e coloquei os olhos na janela do quarto, havia coisas tão mais inadiáveis com o que me ocupar; não me surpreendeu ver o dia acompanhar meus movimentos preguiçosos e deitar um pouco mais de brilho em meu espreguiçar. O sol se pintava lentamente sobre um horizonte de milhões de cores e doava ao vento algo de sua calidez. Tão moroso e magistral! Eu podia sentir o silêncio.
     Secretamente, há em mim uma tendência a superestimar a tranquilidade... E por um momento, a simplicidade doce do que ocorria ao meu redor, engraçado, pareceu-me sorte. Aí, estranhamente, passou por mim um pensamento; tentei lembrar qual fora o desventurado momento em que a criança dentro de mim havia decidido trocar a capacidade de admirar-se das coisas, por uma adulta passividade sem sentido perante coisas absolutamente extraordinárias! Era impossível, não? Que nada da minha suscetibilidade infantil tivesse resistido ao suposto amadurecimento inevitável dos anos... Ao menos eu esperava que fosse!
     E talvez eu tenha lamentado, mas se o fiz, foi bem breve. Porque, logo um sorriso desenhou meus lábios e o espelho de moldura brega rio do estado dos meus cabelos. Poucos minutos depois eu já havia me esquecido dos questionamentos matutinos. Ora, a rotina não costuma fazer concessões. Não é do seu feitio... Vez ou outra, porém, ela tolera as bizarrices do destino e dá a ele uma hora ou duas para se exibir. O dia havia passado depressa, faceiro. Ao cair da tarde, entretanto, entrei em um desses cafés de esquina e tirei da bolsa um romance clichê barato que, numa dessas livrarias que eu frequento, havia chamado a minha atenção. Pedi um café. Talvez o "lendo o quê?" tenha soado como uma cantada, mas foi o fato de ele chegar parafraseando Kafka que me fez convidá-lo, com um gesto, a se sentar.
     - Livros que te afetem como um desastre, que te magoem profundamente, te firam e transpassem... como um machado em nosso mar de gelo! Só esses me dou ao trabalho de ler até o fim!
     - Kafka, não? Seu grande sucesso não me rendeu lá muitas exclamações ou feridas profundas...
     Talvez tenha sido o fato de eu não ter tirado os olhos do meu livro ao dizer isso aliado a minha cara de desdém, que fez sua reação me roubar um riso. Ele, por outro lado, não pareceu muito inclinado a sorrir.
     - Mas, certamente, um romance pateticamente clichê como esse em suas mãos deve causar em ti suspiros incontroláveis, não?
     - Não tanto quanto um Saramago ou um Guimarães!
     É, claro, talvez eu não devesse papear sobre a vida e livros de cabeceira com rapazes estranhos e metidos a existencialista, mas certamente uma boa dose de desafio mental me excita. Então, não achei estranho o fato de termos passado ainda algumas horas conversando sobre isso...

     - Minha ideia de felicidade? - perguntei - Impiedoso você!
     Fiquei olhando o café esfriar enquanto tentava formular uma resposta.
     - Uma taça de vinho!
     Olhei sem entender:
     - O quê?
     - Uma taça de vinho, risadas de bar, uma conversa com uma estranha - sorrimos.
     - Essa é sua ideia de felicidade? - perguntei desdenhosa.
     - ... e um bom livro, claro!
     - Jantar!
     - Sua ideia de felicidade? - ele riu. 
     - Não, já está na hora do jantar, me acompanha?
     - Claro!
     O barulho do caos fez a voz dele se elevar logo que a porta da lanchonete se fechou atrás de nós.
     - Deixa eu adivinhar... - o estranho metido a existencialista me olhava com um ar de decepção e curiosidade.
     - Vai dizer o quê? Sapatos? - soou como uma piada, mas amarela.
     - E você vai dizer que conversamos até agora e não dá para adivinhar nada sobre ti?
     - Ah, não! Ouso dizer que você já sabe o suficiente sobre mim. Eu leio romances pateticamente clichês, não é mesmo?!
     - E Saramago, e Guimarães... além disso mencionou Machado de Assis!
     - Francamente, não precisa exagerar na aprovação! - Eu sorri. Ele também. De qualquer forma, não deve mesmo ser difícil imaginar algo sobre mim, provavelmente sou menos misteriosa do que imagino.
     - Todos somos!
     Em silêncio, ainda andamos alguma quadras antes de chegar ao restaurante. O lugar cheirava a cigarro e pinho sol, mas não existia um pudim de passas melhor em toda a cidade. Pelo menos, não com tanto gosto de nostalgia... Contei a ele sobre a minha infância e ouvi suas histórias sobre a época em que viveu fora do país. E, então, pouco a pouco, como daquela outra vez e talvez até com mais intensidade, senti como se eu pudesse compreender aquele completo estranho, mais do que a típica sensação de conhecer a pessoa de algum lugar. E entre aquelas memórias e sorrisos compartilhados, era como se eu entendesse cada olhar ou gesto; e o fato de não saber nem ao menos seu nome, simplesmente passou batido. Afinal, já era tarde.
     - Eu preciso ir. - levantei - A propósito...
     - Diga.
     - Dançar na chuva!
     - E estamos falando sobre o quê, agora?
     - Felicidade!
     - Todo esse mistério pra isso? Tá bom!
     - Dançar na chuva... e alguém como você...
     Ele me olhou surpreso.
     - Você é menos misterioso do que imagina. - dei uma piscadinha.
     - E qual é o seu nome? - Me limitei a sorrir e virei as costas. Cheguei em casa uma hora depois, e
u só queria um maldito café!


2 comentários:

  1. Nossa, perfeito! Ótimo! Um conto como esse, simples e despretensioso, mas ao mesmo tempo de incrível profundidade em sua simplicidade, foi uma das melhores coisas que pude ler no seu blog.
    Acho que você deveria ir mais longe, Angélica, você já passou do nível de blogueira, tens que expandir isso, quem sabe reunir alguns contos excelentes como este, ou trabalhar mais apuradamente uma ideia. Sua escrita é ótima, cada frase, cada parágrafo, tem que ser lido com atenção e até coisas simples são descritas de forma a atrair um sorriso ou expressões diversas durante a leitura. Sinto um prazer imenso em dedicar um pouco do meu parco tempo para deliciar-me com suas escritas, e acredito que aqui você me encantou mais uma vez, como sempre.
    Parabéns, eu poderia continuar escrevendo mais, mas logo o comentário se tornará tão extenso que será enfadonho. Apenas digo que você é genial. Sem mais.
    Beijo do seu ex-professor e atual fã de carteirinha!
    Eduardo Severino

    ResponderExcluir
  2. Nossa. Muito obrigada, Eduardo! De verdade, sua opinião é sempre uma injeção de ânimo! Não sabe a alegria que sinto ao saber que meus textos proporcionam momentos agradáveis. E nunca é enfadonho escutar o que você tem a dizer e isso se aplica aos seus textos também, que são maravilhosos!
    Sobre expandir minhas ideias, ficarei de fato muito feliz quando eu conseguir fazê-lo. Seu apoio até me faz acreditar ser possível hehe
    E se escrevo bem, como dizes, é por ter tido professores como você. Obrigada mesmo! A admiração é recíproca!!!

    ResponderExcluir