sábado, março 31, 2012

Quando a Vida quer pôr humor


       Estar em uma estação de trem esperando por qualquer coisa que me fizesse despertar daquele marasmo soava mais como uma tentativa suicida. O que, de fato, haveria ali que pudesse me salvar daquele estado de espírito?  Talvez essa fosse a exata razão de eu estar naquele lugar; não me dar o luxo de esperar por nada era - possivelmente - a maneira mais gentil de tratar a mim mesma. Parênteses: atrai-me, irremediavelmente, a gentileza. Período. Ou talvez - digo segredando - o fato de eu estar sentada em um banco antigo ouvindo o trem apitando ao longe, as portas se abrindo, as vozes misturando-se à multidão que aumentava e diminuía, aumentava e diminuía... precipitava-se ao longe e então sossegava, sem nenhuma ideia do que eu faria dali para frente, tivesse mais a ver com um possível gosto pelo isolamento relativamente irônico que é estar entre um milhão de sombras alheias. Possível, mas poderia ser excesso de autoadmiração e uma consequente arrogância, também, o que talvez tivesse o mesmo efeito.
       Autoadmiração excessiva, falsa autossuficiência e um pouquinho de receio da vidaDe qualquer forma, os motivos pouco interessam; as roupas fora de moda que eu usava e o meu cabelo bagunçado pelo vento fresco da tardinha, tampouco. Eu não tinha um plano, um destino escolhido, quem dirá um tíquete. No entanto, eu tinha uma vontade insana de me mexer, de me atrever, de largar tudo e ir viver como aqueles saltimbancos das histórias que eu li quando mocinha - e ir viver (!), eu disse. Eu tinha esse desejo. E uma razão infame gritando em mim, gritando que àquela hora eu deveria estar em casa preparando o jantar e a aula que eu daria no dia seguinte. Que Descartes tivesse sido enterrado com seus malditos métodos! Eu repetia. Ora essa, como se a vida fosse tão exata. Como se a vida... A vida é urgente! A vida e seu humorismo inato - seu e dos seus desígnios. Humor gostoso, é verdade; mesmo quando sardônico, mesmo quando mordaz. Ah, que vaidosa é ela: a vida. E como aprecia uma travessura ou outra, acho que no fundo ela sofre de tédio mórbido e aí nos usa para distrair, para brincar. Outra vez: De qualquer forma, suas razões pouco interessam, seu método (se vil ou não), tampouco. O fato é que ela me usou - só por distração - naquele fim de tarde. Pôs um cara mais ou menos charmoso e seus olhos de frescor ao meu lado esquerdo - no banco de madeira velha - e começou fazer humor. Quem era eu para não rir.
      - Gostei do seu cabelo.
      - Oi?
      - Disse que gostei do seu cabelo.
      - Ah, obrigada.
      Vá lá, ela tem seus trejeitos: a vida. Toda faceira, de longe, "mexendo seus pauzinhos". Quem era eu para duvidar. E aquele sorriso, aquele sorriso ordinário que ele tinha na cara, brejeiro; droga! Placar: vida 1 x vítima do dia 0.
      - Waiting for forever?
      - Sim!
      - É um dos meus filmes preferidos, também. O menino é só devaneio, é ingênuo, gentil. Gosto quando a pessoa é assim. Gosto sinceramente. – e nesse momento o olhei nos olhos - Gosto sinceramente, da sinceridade do seu olhar.
      Não, eu não cheguei a dizer a última frase, até achei que tivesse dito, tal foi a naturalidade com que aquilo me chegou próximo aos lábios e, se disse, foi apenas um sussurrar inaudível. Embora uma voz lá dentro gritasse "gosto sinceramente... seus olhos... tão sinceros... gosto, sem a necessidade de um porquê." E aquele sorriso! Aquele maldito sorriso de moleque vadio, despreocupado em ser, não me deixava pensar com clareza.
      Outro trem parava. Centenas de pessoas se revezavam, indo e vindo, indo e vindo. Vozes indecifráveis. Ruídos. Saltos - poc, poc, poc, poc. Fumaça de cigarro, um cara de óculos quadrados cheirando a álcool.
      - Como assim você não sabe aonde pretende ir?
      - Não sei, simples assim. - desviei os olhos do resto do mundo enquanto sorria aquele sorriso de manteiga.
      - Fugindo de casa? - ele riu. Eu o fitei novamente.
      - Mais ou menos isso... - Ele esperou. - Quero dizer, mais no sentido de fuga, menos no de casa... Deixe-me tentar ser mais clara e menos essa bagunça que eu sou... Acho que tem mais a ver com fugir de mim, de mim mesma. Entende? - Ele permaneceu em silêncio. - Ah, esquece, não vou importuná-lo com tamanha baboseira.
      - Não. Eu realmente entendo! Acredite. - ficamos em silêncio por um longo espaço de tempo até que ele o interrompeu com um "Isso tudo é tão triste, não é?" - falou enquanto olhava em volta.
      - O quê? Não saber aonde ir?
      - Não... não ter motivos para ficar.
      E a vida ria: sardônica, vitoriosa. Placar disparado. Todas aquelas horas de conversa solta e sem disfarces cheias de "entendos" e "eu tambéns" haviam servido apenas para me fazer sentir mais tola. Quem ainda é capaz de acreditar em sina? Não aquela mulher sentada de frente a um trilho de trem, conversando sobre si e seus desejos de vida com um rapaz mais ou menos bonito e mais ou menos inteligente que acabara de conhecer. E não seria um rapaz qualquer que (só porque gostava das mesmas bobagens que ela e só porque a compreendera mais verdadeiramente do que qualquer outra pessoa que antes cruzara seu caminho), a faria acreditar. Ou estava enganada?
      - É, pode ser... mas triste talvez não seja a melhor palavra.
      - Perturbante? Desalentador? Descon... - eu o interrompi.
      - Libertador, eu diria. - Um trem chegara atulhado de gente.
      - Vai mesmo partir? – Não respondi, limitei-me a fitar o trem à frente, que quase lotava. – E esse seu jeito vago, desprendido? O que te fez... o que te faz ser assim? Porque desse olhar?
      Coloquei-me de pé e lhe disse um obrigada, que soou sem sentido (até para mim), antes de ir à bilheteria comprar um tíquete. Alguns minutos depois podia ver o caminho passar como um borrão pela janela em que me recostei. Fechei os olhos. Libertador? É, libertador. Pelo menos por enquanto, pensei. Mas não entendi. No momento, o que me importava era a tal: a liberdade. Disso eu tinha certeza. Ah, a solidão é subestimada; afastar-se das pessoas nos faz senhores de nós mesmos - aprendia isso aos poucos. Mas a vida queria brincar! Assista-me indo embora, pensei  –  e a esse pensamento, sorri. Abri os olhos. O olhar, ele dissera. Porque desse olhar? É sobretudo ausência  –  sussurrei enquanto o trem partia. – É sobretudo essa falta, que eu já nem sei o que causa. É sobretudo essa vontade de entrega, que nunca chega a ser mais. Vontade. Vontade. Vontade... Coisa que eu senti na estação de trem. Vontade. Vontade de ficar, de saber mais sobre o garoto do outro lado do banco. Mas não, eu a recusei. Então a vida pôs-se a brincar com aquelas sensações, decretou que elas me perseguiriam enquanto ela a mim tivesse. A vida tem a mim, não o contrário. E então me lembrei de uma passagem que havia lido uma vez, eu não sei bem ao certo as palavras que diziam, mas era isso que pretendiam dizer: que às vezes acontecem encontros e de repente a pessoa desperta nosso interesse sem que uma palavra tenha sido trocada, acontece no primeiro olhar, até com pessoas totalmente desconhecidas. Mas a lembrança foi breve e pouco lúcida, como o meu passado que passava ao lado da janela... Fechei os olhos novamente, aqueles borrões estavam me dando náuseas. Era a vida que não parava, jogava, jogava, brincava... Então me esgotei. Sonhei.
      Acordei só hoje, parece. E a recordação me pesa. Tanto que decidi partilhá-la, parti-la em palavras e contar; para não sucumbir. Acordei só hoje, digo para me fazer entender: o meu despertar. Quando notei a solidão ser por mim superestimada e o afastar-se das pessoas, meu próprio cárcere. Não, eu não era uma senhora de mim, mas – ao contrário – uma prisioneira de meus próprios medos e monstros e desconfianças e arrogância tola.  Era, e a vida sabia. E a vida nos usou, a mim e ao menino da estação de trem. O obrigada subitamente faz sentido, era a vida que dizia por meio de mim. Então a vida não era ingrata, como eu havia imaginado. Não ter motivos para ficar... Libertador? "Sufocante!" É, sufocante(!) era a palavra certa. E eu queria poder dizê-lo, ao menino do lugar ao lado. Sim, a vida pôs-se a brincar. E brincou!


terça-feira, março 27, 2012

Daqueles sopros que me fizeram ficar


Eu tenho sopros de certeza.
Assim, por serem leves, um estalar de dedos.
No resto do tempo, é bem provável que eu me limite a apenas duvidar.

       Nós nos conhecemos nessa exposição cultural, eu sentada na primeira fileira e ele tocando violino. Nunca entendi nada de música, nem mesmo o que ela me faz sentir. Mas entendo de poesia e era o que ele parecia estar fazendo naquele pequeno palco. Enquanto o assistia, ele parecia oscilar entre o suave e o agressivo. Entregava-se. Delineava um mundo só dele. Deleitava-se. Feria-se. No entanto, isso era como eu o via, talvez eu estivesse apenas me deixando levar por aqueles olhos malditos, que, vulgarmente, pareciam liberar sua essência. Achei que nunca fosse realmente saber, mas eu estava certa; a música era a maneira que ele havia encontrado para se manter respirando, fui descobrindo isso aos poucos... Enquanto iam-se as estações.
       Era inverno, bom para se deixar levar enquanto o sol se levanta lá fora. Cálido. Eu o olhava brincar com o meu travesseiro e brincava bagunçando seu cabelo sem corte, e assim ele ia me contando o sonho que tivera a noite.
       - É sempre o mesmo sonho, tem essa casa de madeira no meio dessa clareira. É noite e eu posso ver luzes acesas dentro da casinha vermelha. E eu tenho que atravessar o pequeno lago para chegar até ela, mas não tem barco e no sonho eu não sei nadar; começa chover e, então a nevar, o lago congela. Logo eu sinto o frio sob meus pés, olho para baixo e estou descalço. Então o lago parece nunca ter fim, eu ando, ando, ando e só depois de muito tempo eu consigo chegar ao outro lado. A porta da casinha se abre e é nessa hora que o sonho desvanece, não sei se acaba, se não consigo lembrar... não sei...
       Naquele momento, era só com ele que eu desejava estar. Ali, conversando com os seus lábios, compartilhando seus delírios. Eu sabia. Eu tinha certeza. Soprou. Doce como o vento fresco que ondulava a seda leve da cortina.
       - Você nunca havia me contado... desse sonho.
       - Não...
       - Você acha que significa alguma coisa?
       Ele olhou para cima, angustiado.
       - Não sei... Sempre acontece assim, e eu acordo com essa nostalgia, essa ausência... É estranho dizer. É estranha a sensação. Mas eu queria entender...
       - Está tudo bem, é só um sonho. - Sorri
       - Eu nunca havia contado isso a ninguém...
       E eu me sentia feliz, só por estar ali, só por aquele momento. Àquela hora, nada mais parecia importar, porque então ele foi dizer? Porque ele foi pronunciar aquela última e maldita frase? Tudo parecia estar indo tão bem, como eu desejava que estivesse. Até que ele me fez estremecer: "Eu nunca havia contado isso a ninguém..." Simples assim e o suficiente para me tirar da estática, da inércia doce dos meus pensamentos. De repente, eu me dei conta de que aos poucos eu me envolvia em sua vida, aos poucos eu estava me deixando levar por esse abismo de incertezas, que são as pessoas. Quando há alguém ocupando espaço na sua vida, nas suas histórias, tudo fica pouco seguro. E, então, isso de formar laços com as pessoas, aproximar-se delas... Eu pensava demais! Eu sempre penso demais.
       E embora a minha vontade de ter ele ao meu lado parecesse se justificar cada vez que ele abria um sorriso, o medo do que eu iria encontrar na casinha de madeira, me fez titubear. Eu queria atravessar o lago, como ele tivera coragem de fazer; mas aí eu desejava encontrar uma lareira e um chá quentes a minha espera e não havia nada que me garantisse não estar penetrando fundo demais em um terreno perigoso... E se no meio do lago, o gelo se partisse? E se a porta se abrisse e, então, decepção? Não, eu não poderia me dar o luxo do desconhecido, do incompreensível. Como é isso de amar e suas consequências. Era melhor voltar para a segurança. Tranquilidade. Covardia.
       - Está tudo bem?
       - Hã? - eu não havia escutado
       - Perguntei se está tudo bem.
       - Está, está. - respondi - Sinto frio. Feche a janela, por favor, estou exausta.
       Virei para o lado. Logo sonhava com uma casinha de madeira, um lago congelado e uma estradinha de pedra. Luzes se projetavam pelas cortinas pesadas postas às janelas, era noite. Virei as costas, a estradinha parecia mais segura, era a mesma por onde eu havia chegado ali, não era? De qualquer forma, pelo menos parecia não haver ninguém nela. Dei o primeiro passo. Nostalgia, ausência. Estranha sensação, dissera ele; entendi.

       Eu tenho sopros de certeza. Passageiros. O resto do tempo, eu me limito a duvidar. Mas eu tenho paciência, também, esperaria por outros - como havia feito todas as outras vezes - outros sopros, outras felicidades. E se no sonho eu fui embora, nostálgica, ali eu ficaria; mais uma vez. Porque cada momento desses, cada breve instante de certeza, valia o meu mundo. Mantinha-o de pé. Valia cada pena, cada dose amarga de dúvida. Me punha suave, deleitava-me. Valia por tudo. Valia por teu olhar.



       

quinta-feira, março 15, 2012

Ser reflexo; Ser-reflexo. Revérbero!


Apático, inquieto. Mórbido, ansioso. Tépido! Acinzentado - garoto estranho - dizia-se vazio. Sem paixões! Tentaram de tudo: Rivotril, Ritalina, Lexapro. Nada resolveu. Mandaram-no para as exatas - para ser um bom engenheiro - tampouco. À noite, quando o silêncio exterior, impiedosamente, se abate. Sabemos. Ah, sabemos. De onde vinham aquelas vozes? Bem do fundo. Cavando mais. "Paixões!", elas gritavam. "Paixões!", repetiam intermitentemente; entre um susto e outro. Um pensamento se resgatava, outro se perdia. Mas o grito não mudava. Sucedendo. Foi para a escola de Direito - para ser um bom jurista - tampouco. À tarde, quando precisava redigir aquelas formalidades todas. "Hipocrisia...", dizia. "Paixões?" Mito. Nem se lembrava mais qual fora (e se existira) o gracioso momento em que ele havia se sentido confortável dentro de si mesmo. Haveria um mísero sopro de sentido em qualquer coisa, afinal? Duvidoso, decidiu colecionar palavras - serzinhos engraçados, indiferentes a dimensão tamanha de seu próprio significado - quis a escola de arte. Entregou-se, como acontece sempre que o amor é grande. Então era verdade, elas existiam; "Paixões...". Doou-se; tão logo, encheu-se. Parte por parte; diluiu-se. Como acontece sempre que se expõe a alma.  Disputado, famoso, escritor. Vendeu-se. Impropério! Como acontece quando o diabo é doce. Embuste! Faltava verdade, onde rebuscados primores não faltavam. Sucumbiu, revirou-se do avesso. Foi um rapaz triste; como o são esses grandes, esses das Belas Artes. Foi partido, pouco a pouco, sem perder partes. (Irônico riso!) Mas, de repente, - sem a tosca pretensão usual - numa noite dessas de sarcasmo amargo e contradição. Onde havia tantos olhos-de-papel, ignoráveis. Sinestesia! Re-nasceu. Nasceu! Naqueles olhos sonsos de vidro; Viu-se. Reconheceu-se. Deleitou-se em paixão. "Paixão! Paixões!" Admirou-se do reflexo. Não era o único, com aquela natureza, afinal. Com aquela forma aparentemente sem encaixe, afinal. Com aquela droga de espírito, afinal. Aquele Benedito e Maledito espírito. Um escárnio! E de repente, foi quando - como Narciso - amou-se. Amou-a. Ergueu as mãos, ela o acompanhou. Tocaram-se. Repetiu a experiência, é preciso ter certeza. Piscou seus olhos placidamente acinzentados. Os olhos de vidro corresponderam. Ser reflexo; Ser-reflexo. Dançaram. Dança dupla. Delicada. Enredo. Amaram-se. A-maram-se. Al-maram-se. Alma dupla, quase una. Enlevo! Ela, por sua vez, amou-o. Mas só por amar-se. Como aquela flor? Garota indecisa - antes - de sua própria existência nonsense, foi capaz de enxergar-se, pela primeira vez. Viu-se. Reconheceu-se; através da sombra cinza que era o rapaz a sua frente. Não era a única com aquelas ideias ditas excêntricas, afinal. Com aquele jeito dissemelhante - causa de alcunhas, afinal. Com aquela droga de espírito poético e sempre desejoso de mais, afinal. Benção e maldição. Ambos pobres sonhadores, em um lugar onde sonhar custa caro. Então ela refletia, posto que era vidro. Era reflexo, posto que já não existia por si só. E foi assim, que Acinzentado Rivotril-Ritalina-Lexapro, encontrou a cura para sua crônica fadiga-de-mundo. "Paixões!", gritavam as vozes interiores. "Paixão!", sussurrava pela garota dos olhos de vidro. Ora, do alto de nosso egocentrismo, ama-se não o oposto. Mas aquele que igual a nós, nos parece. Revérbero!


"Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto."

Fernando Pessoa


segunda-feira, março 12, 2012

Do caos e das borboletas



"Haverá neste cosmo alguma chave para destrancar meu escafandro?
Alguma linha de metrô sem ponto final?
Alguma moeda suficientemente forte para resgatar minha liberdade?
É preciso procurar em outro lugar.
É para lá que vou."
Jean-Dominique Bauby



"Uma torrada e um café forte, por favor." Desculpa, só temos cerveja, vodca, gim... "Então, me veja uma dose disto aí que você está segurando! É forte?" Que tal um copo com água? "É forte? Há, ok, pode ser..." Aqui! Deseja mais alguma coisa? "Algo forte, como eu disse, obrigada!" Tudo bem, acho que vai gostar disso. Mais alguma coisa? "Poderíamos ficar a noite toda nessa. - Mais forte!" Porque? "Porque estou sempre desejosa de algo mais. É assim que as coisas acontecem comigo, é assim que sinto... Porque mesmo eu tinha aceitado água?" Para se acalmar, talvez. "Pode ser... Isso é forte mesmo! De qualquer forma, deixe-me ser sincera. Admito gostar especialmente do leve! Dessa tranquilidade lenta das manhãs 'frescas e frescas'. E essa sonoridade folk do vento. Mas, por outro lado, também gosto especialmente de intensidade. Embora não morra de amores por tempestades e pedras de chuva batendo na minha janela. Mas, no fundo, é sempre da mesma maneira..." O quê? "Ah! As paixões! - Quaisquer que sejam elas. - Livros; Não gosto de livros que me fazem bocejar. Nem de pessoas, tampouco. Gosto de ver Assis transpassando o seu Machado até que queime. E dos que fazem do caos que têm dentro de si, uma ou outra estrela para tingir papel ou oscilar corda, que seja! Pessoas; Não admiro o trivial. Criei afeição pelas exceções silenciosas. É, falo dessas pessoas verdadeiras, perigosamente atrevidas e ironicamente serenas. Você sabe, essas poucas almas intensas que se encontram por aí! O quê? Você é uma delas? Não sabe? Então pode se retirar, por favor. Ah, não, não, volte! Desculpe-me minha exaltação. Ei, gostei do seu olhar de noite, essa sua falta de definição estética e... Esquece. O que diabos você me serviu? Eu me sinto meio fora de mim... Como assim o que é que estou dançando? Não pode ouvir?" Aí ela se levantou e me estendeu a mão.

    - E então?
    - Então, nós dançamos!


    - ... Só isso? Naquela espelunca mesmo?
    - Naquela espelunca mesmo, ao som de uma música que ninguém mais foi capaz de escutar. Dançamos. Sorrimos. Sonhamos. E naquelas horas morosas de tosca simplicidade; é bem provável que tenha sido sua própria insanidade momentânea, que a fez se mostrar como realmente era... e seria.
    - O que você quer dizer?
    - Helena, a excêntrica carta de alforria que me chegava em mãos, em braços e, mais tarde; abraços.


    - Hunm, só não entendi a citação de Bauby...
    - O escafandro.
    - O escafandro? Helena foi como um escafandro?
    - Não, a chave. Helena foi a chave.