quarta-feira, junho 20, 2012

Deve-se estar por aí

          Um certo burburinho de ventos, que se iam, iam, iam. E o que ficava era a sua falta, ânsia e a sonolência do vazio. Maldição de Ondina. E junto ele se ia, ia, ia; era um deixar-se levar pelo sufoco do nada. E ele se deixou, fácil que era o fechar dos olhos. À pouca luz, as sombras dançavam bêbadas frente às suas pálpebras cerradas. De razão. De querer saber. É isso, abandou-se a si mesmo. Ao seu eu-ser. E sobre a sua verdade tão defendidamente sólida, construiu um castelo de areia, tão infiel e leve. Somaram-se a isso duas ou três frases de efeito e um eu metafísico que se sobrepunha, arrogante, a qualquer lugar comum. Amou a fé em si e esqueceu-se de amar. Amou quão fácil é não amar.
          Em busca de ser densamente leve (como adorava as contradições!) pendeu para o centro, onde odiava estar; bem perto de não entender, bem perto de se perder. Linha tênue que se rompeu: perdeu-se. E por ali, por ali bem próximo acreditava estar. Próximo de tudo como imaginava o mundo; o real. Das coisas que mais detestava experimentou. E foi se indo, indo, indo, para bem mais longe de si. Desconheceu-se, renomeou-se. Um alterego; ria-se dessa piada entre uvas de vinhos bons e Whiskys caros regados a danças frenéticas e gosto de cigarro. Era ironia, atuação. Experimentação pseudo-deleitadamente mórbida. Sórdida. Era tão fácil ser vil, incoerente e cego. Fácil ser incrédulo, quem dirá cáustico. E era tão intensamente fácil, fácil fingir ser fácil.
          Ah, que bobagem: de sorrisos afetados trejeitou sua face, de gestos triviais e recursos vulgares pontuou sua vida. E o tempo o levava, não havia piedade. E ele se deixava ir, só por ser mais fácil. E se ia, se ia. Frio como o inverno de julho. Insensível como o é todos os espíritos pequenos. Armou-se contra o mundo e dasalmou-se. Sucumbiu em si, no seu espectro vazio. Reconheceu-se em poemas, na fobia do claustro. Lá os ventos se iam, a respiração era falha. Sonolência do vazio e ângustia. Até que finalmente num grito silencioso e esgar: Clemência Ondina!
          Os ventos o ouviram. Houve, então, certo burburinho, burburinho que se vinha, que se vinha; ventania. Seu castelo infiel, leve, ruiu-se. A poeira subiu e algo roçou seus olhos. Era o passado. O passado a desviá-lo da rota, achou um tormento; duvidou. As pálpebras tremeram, não queria abrir os olhos, retirar-se de si. "Onde está si?", lhe perguntaram. "Está bem aqui em eu", afetou-se o riso. "Ora, pois! Eu vamos! Eu  quero nos levar... há mais luzes lá fora, abra estes olhos, eu. Há mais luzes ali, bem perto, bem perto de eu." O passado não queria esquecer-se. Pouco difuso. "Há mais luzes? Lá fora...", perguntou inseguro. "Ah, eu, olhemos! Vamos levar-nos para voltar a ser criança, para crescer em sermos. Para encantarmos novamente nossos olhos.", respondeu a voz que vinha de longe, que levantava a poeira, que não queria mais se fazer muda e tola. As pálpebras tremeram, sujeitaram-se, abriram!
          Pouco a pouco recomeçou a ver-se, um poeta da simplicidade! Não um eu-cinza enfadado do mundo, como se personificara há tanto. Não, não. Que era aquilo tudo que ele via? Não era novo, apenas (des)costume. E isso era bom, como havia esquecido? De fazer mágica dessa vida, tão absurda, tão completamente absurda... e doce. Doce na medida de um torrão de açúcar para desamargar o café. Ah, o café. Como o havia trocado? Era tão bom estar sóbrio para a vida novamente. E de canções de amor encheu-se os ouvidos e de luzes cor de cristal sob o céu encheu-se os olhos. Todas as cores, todas as cores do arco-celeste. Miríades de bons sorrisos e abraços de velho querido. O pai de toda a mágica lhe sorria, bem a sua frente, bem a sua frente! Como pode cegar-se? "Ei, vamos?", era a voz que agora se fazia presente. E ele foi. Decidido e enfático: "Eu vamos!" Encontrou-se.
          Há quanto havia se perdido de si, por dar-se sempre razão, por achar saber. Que arrogância! Era possível, então, fazer-se ser o que não se é. Malditamente possível! Mas reaprendeu a amar. Pendeu para um dos extremos, que era onde mais gostava de estar: o do intenso gozo da beleza que é viver. E riem-se os desentendidos, os loucos e profanadores dos risos, riem-se os não despertos, os coxos de esperança e os adultos de tudo. Riem-se e riem-se. E ele os deixa rir e ri-se, também. Desarmara-se contra o mundo, almara-se! Lá estava ele agora, lá dentro de si. Inchara-se do que é. Que as chuvas trouxessem bons ventos aos outros, desejava. Que lavassem suas almas e levassem leves seus castelos. Que as luzes se fizessem intensas e que assim sumissem as bêbadas sombras. Que tudo não fosse só pragmatismo! Porque sentir, diz Fernando Pessoa, "sentir é compreender". Nossa realidade são as sensações. Efêmeras! Então que eles sentissem, mais do que acreditassem saber!
          Dane-se a dose de utopia! Quem dirá seu parco entendimento! Acredite se quiser. "A verdade não é nada. O que você acredita ser verdade é tudo." E essa, essa é apenas a história de um sujeito que era assim e depois assado e que na tentativa pretenciosa e egocêntrica de ver-se (e somente a si), acabou por perder-se de si mesmo. Então andava por aí a procurar-se, embora não soubesse que andava bem longe. Até que numa noite dessas, dessas noites quaisquer, trombou-se; com ele mesmo. Incógnito. E, num diálogo estranho de seis ou sete frases, reconheceu-se fora de si. "Há mais luzes lá fora", disse encostado no parapeito da janela, "que eu já nem lembrava que existiam!"


quinta-feira, maio 17, 2012

Eu-pêndulo

Sem desejos homeopáticos, por favor, porque nada é muito quando há paixão. Sim, admiro o olhar que tem paixão! Ah, faça-me o favor! Sem sentimentos letárgicos, pois me dão náuseas. Gosto de quem queima! Assim, serenamente... E quem dosa as palavras com certo mistério, mas entrega o toque até o tremor! Gosto de quem se dosa, gosto de quem se entrega. Tenho afeição pelo caos e excentricidade das almas. E também pelo farfalhar das folhas de outono e da ventania. Gosto de poesia, silêncio, boa música e gentileza. E da pessoa que tem leveza e densidade em ser. É isso, gosto da contradição. Mas, sem falsos prazeres, por favor. Acho-os medíocres, não me satisfazem. Adoece-me esses sorrisos forjados e essas amizades cuspidas. Estranha-me a frieza dos abraços e os amores de passagem. Que seja intenso ou não seja. Gosto das bebidas fortes, dos bons Whiskys e do café bem preto. Gosto da torrada bem torrada, do frio de julho e da sinceridade na cara. Gosto de quem é sem pretensões. Gosto do velho humoroso e de ver o tempo passar. Gosto de celebrar o tempo e gosto de vinhos. Gosto de quem é cortês. A esses brindemos! E não entendo. Não entendo quem tem essa necessidade de falar quando não há assunto e de batucar os dedos na mesa quando a quietude paira. O bom mesmo são as conversas gostosas regadas a café com creme, divagações e petulâncias de quem lê livros eruditas. Embora não dispense piadas de pavê e simplicidade. Bom mesmo são os risos debaixo de chuva e as danças bobas de quem não sabe dançar. Embora me deleite com a maestria de um passo. É a contradição do muito e do pouco, onde o pouco é suficiente para alegrar e o muito é bom como reminiscência. Ou o contrário. E também essas frescuras de viver me atraem; essa felicidade de ignorar as tristezas quando se é possível. Gosto de quem é lunar, porque não me cansa. Gosto de quem é lunático, só por identificação. Então, sem meios-termos dosados, sem mornidões desgostosas. Isso me aborrece: seres medianos. Gosto daquele que tem um "eu" tão grande, que chega mesmo a sentir-se desconfortável por ter de aguentar-se dentro de si. E daquele que é tão pequeno, por não precisar de nada mais do que a "si" mesmo para ser feliz. Gosto, assim, dos que são intensos tanto quanto gosto dos que são bem leves. Apenas, por favor, não me venha com tepidezes. Ou se é ou se é. Ser-se mais ou menos se deve, certamente, à tolice. Não sejas tolo! Ou o sejas, se quiseres assim, pois não me preocupa. Não me preocupa o que me é alheio, o que me é distante. Preocupa-me o que envolve a mim, o que belisca a minha carne, o que eu ponho em minha poesia. A isso, talvez, dariam o nome de egoísmo; eu dou o de leveza. Quanto ao resto, o resto é só distração. Preocupa-me o que amo, as coisas que amo, as pessoas que amo e o que o tempo fará delas... e de mim. O resto, ah, o resto é só ilusão ou, quando muito, mera lembrança. No mais, desculpe-me se oscilo pesadamente em busca de extremos e bem depressa me desvencilho do centro, como pêndulo de marfim. Desculpe-me esse vaivém urgente, é que desejar tão forte me é intrínseco. Ser-se o que se é, deve-se, certamente, ao que se pode ser. Um pêndulo! Que espirituoso...


sábado, abril 28, 2012

Do que será

        Deixe-me pintar uma figura vulgar do que vai acontecer. Em alguns míseros minutos a felicidade irá se exibir, eles não sabem. Ela virá silenciosa, não quer causar estardalhaços desnecessários, virá de surpresa, descalça; que é como ela sempre vem. Impetuosa e excêntrica, no entanto; virá despida. Eles a verão plenamente por um instante. Breve e febril. O tremor no corpo - que ela deixa - um dia não passará de um sopro de reminiscência; porque o momento nunca é bem lembrado. Mas amam-se as sensações! Sabe? Quando elas são doces... Amam-se os brindes e quando o vinho é bom. E eles sorrirão, sem dizer palavra, porque nesses casos ela nem cabe. Na tranquilidade dos olhos e da afinidade genuína, na confusão dos toques e sob o frio que é da noite alta, sumirão os sons do ao redor em respeito ao momento que, por si só, precisará gritar. No entardecer daquela quebra de rotina, aquietar-se-ão os seus espíritos. Mais tarde, entretanto e ironicamente, ambos fugirão alarmados, mesmo que deleitados e entregues, sob uma daquelas luas de papel manteiga.
        "Sinto-me esgotada da verdade."
        "A verdade não importa! (...) Sinto-me um estrangeiro."
        "Viver é absurdo! Somos apenas miséria"
        "Resta esperar que um dia nos tornemos mais."
        "Uma história de amor?"
        "É... Uma história de amor!"
        Ele dirá que foi coincidência, ela dirá um mistério. De tudo, no entanto, ambos farão poesia, qualquer tipo de arte. Porque a verdade não importa, dirão eles - que preferem acreditar no que os faz bem, no que os faz serem melhores. No que os encanta, como uma alegria simples. Se se acredita, existe! Coincidência ou desígnio, não importa. O medo é pouco, não bobagem. Medo do que virá, de nunca mais poder ser. Medo que os colocará distantes, para não roçar no que foi tão bom. Para não por em cacos a lembrança que, todos os dias, quererá se tornar presente. Quererá (re)viver! Desejarão revivê-la. Mas a felicidade farfalha e logo se vai; como a folha com o vento mais forte. Descalça e despida. Plena! Impetuosa e excêntrica. Passageira!
        "E quem sabe eu vá viver de malabarismos."
        "Gostaria de fazê-lo. E quem sabe eu vá viver onde o inverno é mais forte."
        "Prefiro o inverno. Insatisfação?"
        "Sempre quero tudo bem mais, entende?"
        "Entendo... Sinto-me desconfortável."
        "Podemos ir para outro..."
        "Não, dentro de mim mesmo e em qualquer lugar..."
        "Entendo... Um dia a gente se encontrará, por aí. Sabe?"
        "Essas coisas sobre a posição da lua e dos planetas?"
        "Talvez."
        "'O que for, quando for, é que será o que é.' (...) Lê Alberto Caeiro?"
        "Bernardo Soares! Meu favorito."
     Um absurdo! Uns poetas! Dois miseráveis compartilhando um instante tosco de felicidade. Devaneando; insanos. Sensações de seres ímpares que, de repente, são plural. A felicidade se fará presente, junto com os olhos que se entenderão. Breve e febril; tremor no corpo. Então, irônica, ela se fará passado, junto com a escuridão da madrugada que nunca acaba cedo; demora o suficiente para não se fazer esquecer. Aí, risonha, virá a despedida; inevitável, vil. Logo ele estará em casa com um copo de Whisky revivendo o que a madrugada trouxe antes que fosse embora. Logo ela estará em casa com um café forte a lhe sussurrar versos antes que o sol nasça.
        "Ah, madrugada infame! Porque me apresentastes essas sensações?"
        "Ah, brincalhona felicidade! Entrega-nos o sorriso para então nos tirar?"
       A felicidade vem assim, em sopros intensos. E toda a despedida e saudade que são tristes; são tristes porque valem muito; valem por todo o momento, mesmo que breves, em que a felicidade toca a alma, o corpo estremece e fica a lembrança; com suas paixões, seus brindes, suas cores. Que é para quando ela voltar poder ser reconhecida...
       Ah, se soubessem eles: do que será! A felicidade é o que será. Logo. Logo. Lá vem ele, olha-a nos olhos... Breve. Febril. Então é! Como realmente aconteceu. Sem floreios, sem versos. Sobre a verdade? Eu não saberia falar. Mas eu não me importo, porque a mim sobraram apenas as lembranças, as sensações! E os vestígios de um tremor no corpo...
       

quarta-feira, abril 11, 2012

Desse Solstício Lento


        Eu vejo a fumaça como saindo dos meus dedos, o cigarro já se apaga. A escada de incêndio é meu refúgio essa noite e tem sido há alguns invernos gélidos como o atual. Coloco a bituca no parapeito da janela, para aumentar o montinho... que é de cinzas como essa época do ano; desvanecendo melancólica, bucólica. Agrada-me. Agrava-me. Porque eu espero, eu tenho esperado pela primavera a cada dia desse inverno e durante todos os últimos anos. Eu espero, resignada. Simples.
        E como dói ver o outono chegar, tão lindo, tão suave. É o meu preferido, mas dói... e talvez me agrade por ser assim. Porque ao menos ele me faz sentir, sentir, sentir não se sabe o quê. Ele me belisca, me rodeia, me acorda e diz pra eu aproveitar que o inverno já chega. Então eu me ponho viva no outono, eu o saboreio. Urgentemente! Até tiro um tempo para assistir ao pôr-do-sol, porque é a sua época mais linda, mais saudosa.
        Mas é por aquele motivo que o outono dói: porque o inverno já chega e traz consigo a espera. Aí não há nada além dela. Eu só espero. Espero a primavera dar o ar de suas graças, com seus sorrisos de flor e o cheiro agridoce do ar. Do amar. Do sonhar. Na primavera é quando eu sonho, porque sonhar combina com o canto dos pássaros pela manhã e os jasmins doces que crescem por aí. Então vem o verão e eu só sou, porque o verão não me é nada. Não o admiro, digo com sinceridade. O verão me incomoda, descarto-o (se pudesse).
        Embora não haja nada pior do que o inverno, porque eu o amo e o odeio. E isso corrói. É a época dos crescimentos, dizem: quando o frio toma conta, aprende-se que no pior das vezes, esquenta-se com papelão velho (sonho na primavera, que no inverno tenha ao menos papelão velho). Mas aí, ai de mim, tem o  outono; o brincalhão favorito que alaranja as folhas, que bom gosto o dele! Então eu esqueço de imaginar e desejar, esqueço de esperar, esqueço de somente ser e me largo a viver. Viver. Vim ver. Vejo e é com olhos de criança: poéticos. Mas issó só acontece no outono, fazer poesia fácil da simplicidade. Porque ele me inspira - como a lua cheia se esforça por fazer. Tenho essa paixão, o outono. E no inverno, um eterno esperar.
        Esperar por jasmins e damas-da-noite. Esperar por bem-te-vis e música boa pra acordar. Esperar por café com pão e manteiga e pantufa quente pra levantar. Esperar, esperança. Esperar na escada de incêndio cinzenta de cerração do fim de tarde, cinzenta de cigarros esgotados de esperar. Esperar por aquela dança tímida ao som de Little Red Rooster que não quer mais se fazer presente. Esperar pelo presente que o carteiro trará. Esperar, esperança. Esperar que o chuveiro aguente o banho pelando e então você não tenha que aguentar. Esperar pelo menino, pela menina da rua de cima que era seu par na brincadeira de adivinha àqueles anos incertos. Esperar pelo que já foi e não vem ou esperar pelo que nunca será. Esperar, esperança. Espera-se até mesmo, que amanhã seja feriado - porque a coberta nessa época é boa. Espera-se para que se possa respirar. Espera-se para não morrer; hipotérmico, desenxabido e apático. Espera-se ser assim feliz, pelo menos um pouquinho por dia. Então se é inverno, eu espero. Tenho esperança. Porque, de qualquer forma, não haveria como ser diferente; quando as coisas tornam-se geladas, cortantes, esperar - é só o que me resta.


sábado, março 31, 2012

Quando a Vida quer pôr humor


       Estar em uma estação de trem esperando por qualquer coisa que me fizesse despertar daquele marasmo soava mais como uma tentativa suicida. O que, de fato, haveria ali que pudesse me salvar daquele estado de espírito?  Talvez essa fosse a exata razão de eu estar naquele lugar; não me dar o luxo de esperar por nada era - possivelmente - a maneira mais gentil de tratar a mim mesma. Parênteses: atrai-me, irremediavelmente, a gentileza. Período. Ou talvez - digo segredando - o fato de eu estar sentada em um banco antigo ouvindo o trem apitando ao longe, as portas se abrindo, as vozes misturando-se à multidão que aumentava e diminuía, aumentava e diminuía... precipitava-se ao longe e então sossegava, sem nenhuma ideia do que eu faria dali para frente, tivesse mais a ver com um possível gosto pelo isolamento relativamente irônico que é estar entre um milhão de sombras alheias. Possível, mas poderia ser excesso de autoadmiração e uma consequente arrogância, também, o que talvez tivesse o mesmo efeito.
       Autoadmiração excessiva, falsa autossuficiência e um pouquinho de receio da vidaDe qualquer forma, os motivos pouco interessam; as roupas fora de moda que eu usava e o meu cabelo bagunçado pelo vento fresco da tardinha, tampouco. Eu não tinha um plano, um destino escolhido, quem dirá um tíquete. No entanto, eu tinha uma vontade insana de me mexer, de me atrever, de largar tudo e ir viver como aqueles saltimbancos das histórias que eu li quando mocinha - e ir viver (!), eu disse. Eu tinha esse desejo. E uma razão infame gritando em mim, gritando que àquela hora eu deveria estar em casa preparando o jantar e a aula que eu daria no dia seguinte. Que Descartes tivesse sido enterrado com seus malditos métodos! Eu repetia. Ora essa, como se a vida fosse tão exata. Como se a vida... A vida é urgente! A vida e seu humorismo inato - seu e dos seus desígnios. Humor gostoso, é verdade; mesmo quando sardônico, mesmo quando mordaz. Ah, que vaidosa é ela: a vida. E como aprecia uma travessura ou outra, acho que no fundo ela sofre de tédio mórbido e aí nos usa para distrair, para brincar. Outra vez: De qualquer forma, suas razões pouco interessam, seu método (se vil ou não), tampouco. O fato é que ela me usou - só por distração - naquele fim de tarde. Pôs um cara mais ou menos charmoso e seus olhos de frescor ao meu lado esquerdo - no banco de madeira velha - e começou fazer humor. Quem era eu para não rir.
      - Gostei do seu cabelo.
      - Oi?
      - Disse que gostei do seu cabelo.
      - Ah, obrigada.
      Vá lá, ela tem seus trejeitos: a vida. Toda faceira, de longe, "mexendo seus pauzinhos". Quem era eu para duvidar. E aquele sorriso, aquele sorriso ordinário que ele tinha na cara, brejeiro; droga! Placar: vida 1 x vítima do dia 0.
      - Waiting for forever?
      - Sim!
      - É um dos meus filmes preferidos, também. O menino é só devaneio, é ingênuo, gentil. Gosto quando a pessoa é assim. Gosto sinceramente. – e nesse momento o olhei nos olhos - Gosto sinceramente, da sinceridade do seu olhar.
      Não, eu não cheguei a dizer a última frase, até achei que tivesse dito, tal foi a naturalidade com que aquilo me chegou próximo aos lábios e, se disse, foi apenas um sussurrar inaudível. Embora uma voz lá dentro gritasse "gosto sinceramente... seus olhos... tão sinceros... gosto, sem a necessidade de um porquê." E aquele sorriso! Aquele maldito sorriso de moleque vadio, despreocupado em ser, não me deixava pensar com clareza.
      Outro trem parava. Centenas de pessoas se revezavam, indo e vindo, indo e vindo. Vozes indecifráveis. Ruídos. Saltos - poc, poc, poc, poc. Fumaça de cigarro, um cara de óculos quadrados cheirando a álcool.
      - Como assim você não sabe aonde pretende ir?
      - Não sei, simples assim. - desviei os olhos do resto do mundo enquanto sorria aquele sorriso de manteiga.
      - Fugindo de casa? - ele riu. Eu o fitei novamente.
      - Mais ou menos isso... - Ele esperou. - Quero dizer, mais no sentido de fuga, menos no de casa... Deixe-me tentar ser mais clara e menos essa bagunça que eu sou... Acho que tem mais a ver com fugir de mim, de mim mesma. Entende? - Ele permaneceu em silêncio. - Ah, esquece, não vou importuná-lo com tamanha baboseira.
      - Não. Eu realmente entendo! Acredite. - ficamos em silêncio por um longo espaço de tempo até que ele o interrompeu com um "Isso tudo é tão triste, não é?" - falou enquanto olhava em volta.
      - O quê? Não saber aonde ir?
      - Não... não ter motivos para ficar.
      E a vida ria: sardônica, vitoriosa. Placar disparado. Todas aquelas horas de conversa solta e sem disfarces cheias de "entendos" e "eu tambéns" haviam servido apenas para me fazer sentir mais tola. Quem ainda é capaz de acreditar em sina? Não aquela mulher sentada de frente a um trilho de trem, conversando sobre si e seus desejos de vida com um rapaz mais ou menos bonito e mais ou menos inteligente que acabara de conhecer. E não seria um rapaz qualquer que (só porque gostava das mesmas bobagens que ela e só porque a compreendera mais verdadeiramente do que qualquer outra pessoa que antes cruzara seu caminho), a faria acreditar. Ou estava enganada?
      - É, pode ser... mas triste talvez não seja a melhor palavra.
      - Perturbante? Desalentador? Descon... - eu o interrompi.
      - Libertador, eu diria. - Um trem chegara atulhado de gente.
      - Vai mesmo partir? – Não respondi, limitei-me a fitar o trem à frente, que quase lotava. – E esse seu jeito vago, desprendido? O que te fez... o que te faz ser assim? Porque desse olhar?
      Coloquei-me de pé e lhe disse um obrigada, que soou sem sentido (até para mim), antes de ir à bilheteria comprar um tíquete. Alguns minutos depois podia ver o caminho passar como um borrão pela janela em que me recostei. Fechei os olhos. Libertador? É, libertador. Pelo menos por enquanto, pensei. Mas não entendi. No momento, o que me importava era a tal: a liberdade. Disso eu tinha certeza. Ah, a solidão é subestimada; afastar-se das pessoas nos faz senhores de nós mesmos - aprendia isso aos poucos. Mas a vida queria brincar! Assista-me indo embora, pensei  –  e a esse pensamento, sorri. Abri os olhos. O olhar, ele dissera. Porque desse olhar? É sobretudo ausência  –  sussurrei enquanto o trem partia. – É sobretudo essa falta, que eu já nem sei o que causa. É sobretudo essa vontade de entrega, que nunca chega a ser mais. Vontade. Vontade. Vontade... Coisa que eu senti na estação de trem. Vontade. Vontade de ficar, de saber mais sobre o garoto do outro lado do banco. Mas não, eu a recusei. Então a vida pôs-se a brincar com aquelas sensações, decretou que elas me perseguiriam enquanto ela a mim tivesse. A vida tem a mim, não o contrário. E então me lembrei de uma passagem que havia lido uma vez, eu não sei bem ao certo as palavras que diziam, mas era isso que pretendiam dizer: que às vezes acontecem encontros e de repente a pessoa desperta nosso interesse sem que uma palavra tenha sido trocada, acontece no primeiro olhar, até com pessoas totalmente desconhecidas. Mas a lembrança foi breve e pouco lúcida, como o meu passado que passava ao lado da janela... Fechei os olhos novamente, aqueles borrões estavam me dando náuseas. Era a vida que não parava, jogava, jogava, brincava... Então me esgotei. Sonhei.
      Acordei só hoje, parece. E a recordação me pesa. Tanto que decidi partilhá-la, parti-la em palavras e contar; para não sucumbir. Acordei só hoje, digo para me fazer entender: o meu despertar. Quando notei a solidão ser por mim superestimada e o afastar-se das pessoas, meu próprio cárcere. Não, eu não era uma senhora de mim, mas – ao contrário – uma prisioneira de meus próprios medos e monstros e desconfianças e arrogância tola.  Era, e a vida sabia. E a vida nos usou, a mim e ao menino da estação de trem. O obrigada subitamente faz sentido, era a vida que dizia por meio de mim. Então a vida não era ingrata, como eu havia imaginado. Não ter motivos para ficar... Libertador? "Sufocante!" É, sufocante(!) era a palavra certa. E eu queria poder dizê-lo, ao menino do lugar ao lado. Sim, a vida pôs-se a brincar. E brincou!


terça-feira, março 27, 2012

Daqueles sopros que me fizeram ficar


Eu tenho sopros de certeza.
Assim, por serem leves, um estalar de dedos.
No resto do tempo, é bem provável que eu me limite a apenas duvidar.

       Nós nos conhecemos nessa exposição cultural, eu sentada na primeira fileira e ele tocando violino. Nunca entendi nada de música, nem mesmo o que ela me faz sentir. Mas entendo de poesia e era o que ele parecia estar fazendo naquele pequeno palco. Enquanto o assistia, ele parecia oscilar entre o suave e o agressivo. Entregava-se. Delineava um mundo só dele. Deleitava-se. Feria-se. No entanto, isso era como eu o via, talvez eu estivesse apenas me deixando levar por aqueles olhos malditos, que, vulgarmente, pareciam liberar sua essência. Achei que nunca fosse realmente saber, mas eu estava certa; a música era a maneira que ele havia encontrado para se manter respirando, fui descobrindo isso aos poucos... Enquanto iam-se as estações.
       Era inverno, bom para se deixar levar enquanto o sol se levanta lá fora. Cálido. Eu o olhava brincar com o meu travesseiro e brincava bagunçando seu cabelo sem corte, e assim ele ia me contando o sonho que tivera a noite.
       - É sempre o mesmo sonho, tem essa casa de madeira no meio dessa clareira. É noite e eu posso ver luzes acesas dentro da casinha vermelha. E eu tenho que atravessar o pequeno lago para chegar até ela, mas não tem barco e no sonho eu não sei nadar; começa chover e, então a nevar, o lago congela. Logo eu sinto o frio sob meus pés, olho para baixo e estou descalço. Então o lago parece nunca ter fim, eu ando, ando, ando e só depois de muito tempo eu consigo chegar ao outro lado. A porta da casinha se abre e é nessa hora que o sonho desvanece, não sei se acaba, se não consigo lembrar... não sei...
       Naquele momento, era só com ele que eu desejava estar. Ali, conversando com os seus lábios, compartilhando seus delírios. Eu sabia. Eu tinha certeza. Soprou. Doce como o vento fresco que ondulava a seda leve da cortina.
       - Você nunca havia me contado... desse sonho.
       - Não...
       - Você acha que significa alguma coisa?
       Ele olhou para cima, angustiado.
       - Não sei... Sempre acontece assim, e eu acordo com essa nostalgia, essa ausência... É estranho dizer. É estranha a sensação. Mas eu queria entender...
       - Está tudo bem, é só um sonho. - Sorri
       - Eu nunca havia contado isso a ninguém...
       E eu me sentia feliz, só por estar ali, só por aquele momento. Àquela hora, nada mais parecia importar, porque então ele foi dizer? Porque ele foi pronunciar aquela última e maldita frase? Tudo parecia estar indo tão bem, como eu desejava que estivesse. Até que ele me fez estremecer: "Eu nunca havia contado isso a ninguém..." Simples assim e o suficiente para me tirar da estática, da inércia doce dos meus pensamentos. De repente, eu me dei conta de que aos poucos eu me envolvia em sua vida, aos poucos eu estava me deixando levar por esse abismo de incertezas, que são as pessoas. Quando há alguém ocupando espaço na sua vida, nas suas histórias, tudo fica pouco seguro. E, então, isso de formar laços com as pessoas, aproximar-se delas... Eu pensava demais! Eu sempre penso demais.
       E embora a minha vontade de ter ele ao meu lado parecesse se justificar cada vez que ele abria um sorriso, o medo do que eu iria encontrar na casinha de madeira, me fez titubear. Eu queria atravessar o lago, como ele tivera coragem de fazer; mas aí eu desejava encontrar uma lareira e um chá quentes a minha espera e não havia nada que me garantisse não estar penetrando fundo demais em um terreno perigoso... E se no meio do lago, o gelo se partisse? E se a porta se abrisse e, então, decepção? Não, eu não poderia me dar o luxo do desconhecido, do incompreensível. Como é isso de amar e suas consequências. Era melhor voltar para a segurança. Tranquilidade. Covardia.
       - Está tudo bem?
       - Hã? - eu não havia escutado
       - Perguntei se está tudo bem.
       - Está, está. - respondi - Sinto frio. Feche a janela, por favor, estou exausta.
       Virei para o lado. Logo sonhava com uma casinha de madeira, um lago congelado e uma estradinha de pedra. Luzes se projetavam pelas cortinas pesadas postas às janelas, era noite. Virei as costas, a estradinha parecia mais segura, era a mesma por onde eu havia chegado ali, não era? De qualquer forma, pelo menos parecia não haver ninguém nela. Dei o primeiro passo. Nostalgia, ausência. Estranha sensação, dissera ele; entendi.

       Eu tenho sopros de certeza. Passageiros. O resto do tempo, eu me limito a duvidar. Mas eu tenho paciência, também, esperaria por outros - como havia feito todas as outras vezes - outros sopros, outras felicidades. E se no sonho eu fui embora, nostálgica, ali eu ficaria; mais uma vez. Porque cada momento desses, cada breve instante de certeza, valia o meu mundo. Mantinha-o de pé. Valia cada pena, cada dose amarga de dúvida. Me punha suave, deleitava-me. Valia por tudo. Valia por teu olhar.



       

quinta-feira, março 15, 2012

Ser reflexo; Ser-reflexo. Revérbero!


Apático, inquieto. Mórbido, ansioso. Tépido! Acinzentado - garoto estranho - dizia-se vazio. Sem paixões! Tentaram de tudo: Rivotril, Ritalina, Lexapro. Nada resolveu. Mandaram-no para as exatas - para ser um bom engenheiro - tampouco. À noite, quando o silêncio exterior, impiedosamente, se abate. Sabemos. Ah, sabemos. De onde vinham aquelas vozes? Bem do fundo. Cavando mais. "Paixões!", elas gritavam. "Paixões!", repetiam intermitentemente; entre um susto e outro. Um pensamento se resgatava, outro se perdia. Mas o grito não mudava. Sucedendo. Foi para a escola de Direito - para ser um bom jurista - tampouco. À tarde, quando precisava redigir aquelas formalidades todas. "Hipocrisia...", dizia. "Paixões?" Mito. Nem se lembrava mais qual fora (e se existira) o gracioso momento em que ele havia se sentido confortável dentro de si mesmo. Haveria um mísero sopro de sentido em qualquer coisa, afinal? Duvidoso, decidiu colecionar palavras - serzinhos engraçados, indiferentes a dimensão tamanha de seu próprio significado - quis a escola de arte. Entregou-se, como acontece sempre que o amor é grande. Então era verdade, elas existiam; "Paixões...". Doou-se; tão logo, encheu-se. Parte por parte; diluiu-se. Como acontece sempre que se expõe a alma.  Disputado, famoso, escritor. Vendeu-se. Impropério! Como acontece quando o diabo é doce. Embuste! Faltava verdade, onde rebuscados primores não faltavam. Sucumbiu, revirou-se do avesso. Foi um rapaz triste; como o são esses grandes, esses das Belas Artes. Foi partido, pouco a pouco, sem perder partes. (Irônico riso!) Mas, de repente, - sem a tosca pretensão usual - numa noite dessas de sarcasmo amargo e contradição. Onde havia tantos olhos-de-papel, ignoráveis. Sinestesia! Re-nasceu. Nasceu! Naqueles olhos sonsos de vidro; Viu-se. Reconheceu-se. Deleitou-se em paixão. "Paixão! Paixões!" Admirou-se do reflexo. Não era o único, com aquela natureza, afinal. Com aquela forma aparentemente sem encaixe, afinal. Com aquela droga de espírito, afinal. Aquele Benedito e Maledito espírito. Um escárnio! E de repente, foi quando - como Narciso - amou-se. Amou-a. Ergueu as mãos, ela o acompanhou. Tocaram-se. Repetiu a experiência, é preciso ter certeza. Piscou seus olhos placidamente acinzentados. Os olhos de vidro corresponderam. Ser reflexo; Ser-reflexo. Dançaram. Dança dupla. Delicada. Enredo. Amaram-se. A-maram-se. Al-maram-se. Alma dupla, quase una. Enlevo! Ela, por sua vez, amou-o. Mas só por amar-se. Como aquela flor? Garota indecisa - antes - de sua própria existência nonsense, foi capaz de enxergar-se, pela primeira vez. Viu-se. Reconheceu-se; através da sombra cinza que era o rapaz a sua frente. Não era a única com aquelas ideias ditas excêntricas, afinal. Com aquele jeito dissemelhante - causa de alcunhas, afinal. Com aquela droga de espírito poético e sempre desejoso de mais, afinal. Benção e maldição. Ambos pobres sonhadores, em um lugar onde sonhar custa caro. Então ela refletia, posto que era vidro. Era reflexo, posto que já não existia por si só. E foi assim, que Acinzentado Rivotril-Ritalina-Lexapro, encontrou a cura para sua crônica fadiga-de-mundo. "Paixões!", gritavam as vozes interiores. "Paixão!", sussurrava pela garota dos olhos de vidro. Ora, do alto de nosso egocentrismo, ama-se não o oposto. Mas aquele que igual a nós, nos parece. Revérbero!


"Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto."

Fernando Pessoa


segunda-feira, março 12, 2012

Do caos e das borboletas



"Haverá neste cosmo alguma chave para destrancar meu escafandro?
Alguma linha de metrô sem ponto final?
Alguma moeda suficientemente forte para resgatar minha liberdade?
É preciso procurar em outro lugar.
É para lá que vou."
Jean-Dominique Bauby



"Uma torrada e um café forte, por favor." Desculpa, só temos cerveja, vodca, gim... "Então, me veja uma dose disto aí que você está segurando! É forte?" Que tal um copo com água? "É forte? Há, ok, pode ser..." Aqui! Deseja mais alguma coisa? "Algo forte, como eu disse, obrigada!" Tudo bem, acho que vai gostar disso. Mais alguma coisa? "Poderíamos ficar a noite toda nessa. - Mais forte!" Porque? "Porque estou sempre desejosa de algo mais. É assim que as coisas acontecem comigo, é assim que sinto... Porque mesmo eu tinha aceitado água?" Para se acalmar, talvez. "Pode ser... Isso é forte mesmo! De qualquer forma, deixe-me ser sincera. Admito gostar especialmente do leve! Dessa tranquilidade lenta das manhãs 'frescas e frescas'. E essa sonoridade folk do vento. Mas, por outro lado, também gosto especialmente de intensidade. Embora não morra de amores por tempestades e pedras de chuva batendo na minha janela. Mas, no fundo, é sempre da mesma maneira..." O quê? "Ah! As paixões! - Quaisquer que sejam elas. - Livros; Não gosto de livros que me fazem bocejar. Nem de pessoas, tampouco. Gosto de ver Assis transpassando o seu Machado até que queime. E dos que fazem do caos que têm dentro de si, uma ou outra estrela para tingir papel ou oscilar corda, que seja! Pessoas; Não admiro o trivial. Criei afeição pelas exceções silenciosas. É, falo dessas pessoas verdadeiras, perigosamente atrevidas e ironicamente serenas. Você sabe, essas poucas almas intensas que se encontram por aí! O quê? Você é uma delas? Não sabe? Então pode se retirar, por favor. Ah, não, não, volte! Desculpe-me minha exaltação. Ei, gostei do seu olhar de noite, essa sua falta de definição estética e... Esquece. O que diabos você me serviu? Eu me sinto meio fora de mim... Como assim o que é que estou dançando? Não pode ouvir?" Aí ela se levantou e me estendeu a mão.

    - E então?
    - Então, nós dançamos!


    - ... Só isso? Naquela espelunca mesmo?
    - Naquela espelunca mesmo, ao som de uma música que ninguém mais foi capaz de escutar. Dançamos. Sorrimos. Sonhamos. E naquelas horas morosas de tosca simplicidade; é bem provável que tenha sido sua própria insanidade momentânea, que a fez se mostrar como realmente era... e seria.
    - O que você quer dizer?
    - Helena, a excêntrica carta de alforria que me chegava em mãos, em braços e, mais tarde; abraços.


    - Hunm, só não entendi a citação de Bauby...
    - O escafandro.
    - O escafandro? Helena foi como um escafandro?
    - Não, a chave. Helena foi a chave.


segunda-feira, fevereiro 27, 2012

Quando caem as folhas


      Era verão. Já havia uma semana que eu estava naquela cidade, dali dois dias seguiria viagem e precisava de músicas novas para o meu CD player. Ela segurava Hatful of Hollow dos Smiths quando a vi e não pude deixar de compará-la a uma manhã de outono. As manhãs de outono são minhas preferidas... e os ventos de outono e folhas caindo no outono! Ela me lembrou banho tomado, também, banho de verão. Usava um vestido verde, mas talvez fosse azul. É, é bem provável que fosse azul! O fato é que eu provavelmente não teria notado se ela não estivesse com as costas de fora. Eu tenho fetiche por costas. Não é tão ruim assim, algumas pessoas gostam de pés! Eu gosto de costas! "Oi, nunca te vi por aqui." Não isso soaria ridículo demais. Sorri ao me imaginar dizendo. Então pensei em perguntar se ela sabia onde ficava a sessão de "álbuns para idiotas em potencial", mas fiquei com medo de a resposta ser "é aquela ali à esquerda" ou algo do gênero. Me limitei a olhar para Hatful of Hollow com curiosidade e deixar ela notar. Funcionou.
      - Gosta deles? - ela perguntou indiferente.
      - Um pouco. - mostrei o álbum do Scorpions que segurava em uma mão e o do Pink Floyd na outra- Faz mais meu gênero!
      - Hunm. Sabes se eles têm Beirut para vender aqui?
      Eu tinha acabado de vê-lo na outra seção e me questionado sobre que tipo de pessoa ouvia aquele tipo de música. Coincidentemente, ali estava o tipo e, admito, por um momento me pareceu um tipo bom...
      - Acho que está... - fui andando e ela me acompanhou, corri o dedo sobre as estantes e retirei The Flying Club Cup do meio de uns outros álbuns desconhecidos. - Aqui! - Ela o tirou da minha mão e sussurrou cantando:
      - "And outside is warm as a bed with a maid and I find it's all our waves and raves."
      Eu ri!
      - Você deveria ser proibida de cantar! - Falei, fingindo desgosto.
      Ela me olhou e deu um sorriso desgraçadamente desinteressado antes de ir até o caixa. É claro que eu não tencionava continuar a conversa só por causa daquelas costas sexy ou do modo como seus olhos de amêndoa me intrigavam... Ou talvez tenha sido exatamente isso que me impeliu a segui-lá quando ela deixou a loja. De qualquer forma, parece que todo idiota acredita em desígnios e, infelizmente, nunca surpreendi por ser exceção. Deixei os CD's que segurava em cima do balcão e saí apressado.
      - Foi uma piada! - Falei enquanto apressava o passo. Ela olhou para trás.
      - Eu sei! - Sorriu.
      - Estava pensando... - Ela me olhou com curiosidade - se você não gostaria de trabalhar como guia essa tarde.
      - Vindo de onde?
      - Longe!
      Eu não esperava que ela aceitasse tão facilmente, mas depois de umas duas horas de conversa solta notei que rotina não fazia muito o gosto dela e mesmo uma pequena aventura numa tarde de sábado qualquer vinha a calhar. Ela me levou a um parque, um desses parques que só cidade grande tem, mas é bem provável que o fato de eu não ter dado a mínima para o lugar tenha a ver com o modo como os olhos dela acompanhavam o riso, que vinha fácil. Tinha um humor lunático, um mundinho particular e uma coleção de músicas estranhas. Deitar sobre a grama com os pés descalços era um de seus passatempos favoritos.
      - Eu não vou deitar aí!
      - Então fique de pé!
      E lá estava eu sob uma daquelas árvores grandes que eu nunca soube o nome, falando sobre estradinhas de chão e tipos de vinho. Ela era excêntrica como as folhas balançando forte só por vaidade, mas doce como a chuva fina a espalhar cheiro de terra cantando uma canção. Era estranho, olhar dentro de seus olhos e enxergar tudo o que eu desejava. À nossa volta, senti como se o resto do lugar fosse uma realidade à parte invejando nosso momento ímpar. Mas talvez isso seja apenas a minha mania de poetizar o que realmente aconteceu se manifestando novamente. O fato é, que sempre que me lembro, a reminiscência traz consigo um sorriso! Mas daí chega naquele ponto, quando já caía a tarde. E o sorriso amarga.
       A cidade silenciava à medida que o tempo passava ligeiro. Fomos tomar um cappuccino daqueles de máquina em uma lanchonete que, segundo ela, não costumava ser frequentada por turistas por ser pouco conhecida, apesar de ser uma das melhores da região. E, por um momento, enquanto eu passava o dedo sobre a borda da xícara ouvindo-a falar sobre cinema e sonhos de travesseiro, a  voz dela soou como uma chance de eu ser feliz. E o sorriso dela, meio sem graça, parecia desenhar ventura. Pode ser que seja assim, quando a gente se distrai; nada de pretensões ou expectativas, ironicamente, o coração relaxa e deixa vir. Ela era tranquila, não precisava preencher todo silêncio com qualquer coisa banal e tinha aquele olhar indiscreto, mesmo quando sutil, que mostra a alma. Ela era assim. E eu um completo imbecil.
      - Preciso ir ao toilette. - falou fazendo um biquinho francês propositalmente engraçado enquanto levantava. Sorrimos. Ela virou as costas e sumiu ao final de um corredor.
      É aquela velha história de pessoa certa, ideal ou a metade da sua laranja que os livros narram e as músicas cantam. Os menos poetas até afirmam que isso não existe, mas no fundo mesmo, é o que passam a vida toda perseguindo. O fato é que você até encontra a pessoa de suas idealizações, aquela que compartilha dos seus sonhos mais insanos. Até tromba com ela em uma esquina ou padaria qualquer. Mas ela te vira as costas e você a deixa ir, porque o momento é que não é propício. Afinal, você já tem coisas demais com o que se preocupar. Afinal, correr riscos... Afinal, quem garante... Afinal. Afinais!
A-finais... que não permitem começos.
      Então, convenci-me de que a situação e o momento eram os piores possíveis e assim acalmei minha efusão de desejos. Afastei a cadeira com um barulho desnecessário, talvez esperasse que ela voltasse correndo para me impedir. Mas ela não veio. Deixei o dinheiro sobre a mesa, junto com um bilhete. Abri a porta e entrei na noite que subitamente pareceu congelar-me. Um dia eu poderia voltar, procurá-la. Quando minha vida se ajeitasse, entende? Um dia, diferente desse...
      - Táaaxi!      
      Àquela hora, haveria ônibus para fora da cidade?
     
       
     Cidades e cidades depois, anos já se passaram. E nunca na vida eu pude sentir, um minuto sequer, a certeza de um momento ideal. Quantas vezes eu já me peguei, com os olhos fixos em um objeto qualquer ou em alguma moça de olhos de amêndoas, tentando imaginar o que eu nunca saberei; qual terá sido a reação dela ao chegar à mesa. As xícaras vazias, o dinheiro sob o porta-guardanapos brega e o bilhete rabiscado ligeiro sobre um deles. "Obrigado, pelo breve outono."

terça-feira, fevereiro 07, 2012

Livros, felicidade e café




     A música escolhida durante a madrugada fazia jus ao meu humor matinal. Mas já havia um bom tempo que meu despertador não me provocava qualquer tipo de inspiração poética. Por um momento, contudo, meus devaneios habituais pareceram, de certa forma, inoportunos; abandonei-os, pois, sob o travesseiro e coloquei os olhos na janela do quarto, havia coisas tão mais inadiáveis com o que me ocupar; não me surpreendeu ver o dia acompanhar meus movimentos preguiçosos e deitar um pouco mais de brilho em meu espreguiçar. O sol se pintava lentamente sobre um horizonte de milhões de cores e doava ao vento algo de sua calidez. Tão moroso e magistral! Eu podia sentir o silêncio.
     Secretamente, há em mim uma tendência a superestimar a tranquilidade... E por um momento, a simplicidade doce do que ocorria ao meu redor, engraçado, pareceu-me sorte. Aí, estranhamente, passou por mim um pensamento; tentei lembrar qual fora o desventurado momento em que a criança dentro de mim havia decidido trocar a capacidade de admirar-se das coisas, por uma adulta passividade sem sentido perante coisas absolutamente extraordinárias! Era impossível, não? Que nada da minha suscetibilidade infantil tivesse resistido ao suposto amadurecimento inevitável dos anos... Ao menos eu esperava que fosse!
     E talvez eu tenha lamentado, mas se o fiz, foi bem breve. Porque, logo um sorriso desenhou meus lábios e o espelho de moldura brega rio do estado dos meus cabelos. Poucos minutos depois eu já havia me esquecido dos questionamentos matutinos. Ora, a rotina não costuma fazer concessões. Não é do seu feitio... Vez ou outra, porém, ela tolera as bizarrices do destino e dá a ele uma hora ou duas para se exibir. O dia havia passado depressa, faceiro. Ao cair da tarde, entretanto, entrei em um desses cafés de esquina e tirei da bolsa um romance clichê barato que, numa dessas livrarias que eu frequento, havia chamado a minha atenção. Pedi um café. Talvez o "lendo o quê?" tenha soado como uma cantada, mas foi o fato de ele chegar parafraseando Kafka que me fez convidá-lo, com um gesto, a se sentar.
     - Livros que te afetem como um desastre, que te magoem profundamente, te firam e transpassem... como um machado em nosso mar de gelo! Só esses me dou ao trabalho de ler até o fim!
     - Kafka, não? Seu grande sucesso não me rendeu lá muitas exclamações ou feridas profundas...
     Talvez tenha sido o fato de eu não ter tirado os olhos do meu livro ao dizer isso aliado a minha cara de desdém, que fez sua reação me roubar um riso. Ele, por outro lado, não pareceu muito inclinado a sorrir.
     - Mas, certamente, um romance pateticamente clichê como esse em suas mãos deve causar em ti suspiros incontroláveis, não?
     - Não tanto quanto um Saramago ou um Guimarães!
     É, claro, talvez eu não devesse papear sobre a vida e livros de cabeceira com rapazes estranhos e metidos a existencialista, mas certamente uma boa dose de desafio mental me excita. Então, não achei estranho o fato de termos passado ainda algumas horas conversando sobre isso...

     - Minha ideia de felicidade? - perguntei - Impiedoso você!
     Fiquei olhando o café esfriar enquanto tentava formular uma resposta.
     - Uma taça de vinho!
     Olhei sem entender:
     - O quê?
     - Uma taça de vinho, risadas de bar, uma conversa com uma estranha - sorrimos.
     - Essa é sua ideia de felicidade? - perguntei desdenhosa.
     - ... e um bom livro, claro!
     - Jantar!
     - Sua ideia de felicidade? - ele riu. 
     - Não, já está na hora do jantar, me acompanha?
     - Claro!
     O barulho do caos fez a voz dele se elevar logo que a porta da lanchonete se fechou atrás de nós.
     - Deixa eu adivinhar... - o estranho metido a existencialista me olhava com um ar de decepção e curiosidade.
     - Vai dizer o quê? Sapatos? - soou como uma piada, mas amarela.
     - E você vai dizer que conversamos até agora e não dá para adivinhar nada sobre ti?
     - Ah, não! Ouso dizer que você já sabe o suficiente sobre mim. Eu leio romances pateticamente clichês, não é mesmo?!
     - E Saramago, e Guimarães... além disso mencionou Machado de Assis!
     - Francamente, não precisa exagerar na aprovação! - Eu sorri. Ele também. De qualquer forma, não deve mesmo ser difícil imaginar algo sobre mim, provavelmente sou menos misteriosa do que imagino.
     - Todos somos!
     Em silêncio, ainda andamos alguma quadras antes de chegar ao restaurante. O lugar cheirava a cigarro e pinho sol, mas não existia um pudim de passas melhor em toda a cidade. Pelo menos, não com tanto gosto de nostalgia... Contei a ele sobre a minha infância e ouvi suas histórias sobre a época em que viveu fora do país. E, então, pouco a pouco, como daquela outra vez e talvez até com mais intensidade, senti como se eu pudesse compreender aquele completo estranho, mais do que a típica sensação de conhecer a pessoa de algum lugar. E entre aquelas memórias e sorrisos compartilhados, era como se eu entendesse cada olhar ou gesto; e o fato de não saber nem ao menos seu nome, simplesmente passou batido. Afinal, já era tarde.
     - Eu preciso ir. - levantei - A propósito...
     - Diga.
     - Dançar na chuva!
     - E estamos falando sobre o quê, agora?
     - Felicidade!
     - Todo esse mistério pra isso? Tá bom!
     - Dançar na chuva... e alguém como você...
     Ele me olhou surpreso.
     - Você é menos misterioso do que imagina. - dei uma piscadinha.
     - E qual é o seu nome? - Me limitei a sorrir e virei as costas. Cheguei em casa uma hora depois, e
u só queria um maldito café!