segunda-feira, fevereiro 27, 2012

Quando caem as folhas


      Era verão. Já havia uma semana que eu estava naquela cidade, dali dois dias seguiria viagem e precisava de músicas novas para o meu CD player. Ela segurava Hatful of Hollow dos Smiths quando a vi e não pude deixar de compará-la a uma manhã de outono. As manhãs de outono são minhas preferidas... e os ventos de outono e folhas caindo no outono! Ela me lembrou banho tomado, também, banho de verão. Usava um vestido verde, mas talvez fosse azul. É, é bem provável que fosse azul! O fato é que eu provavelmente não teria notado se ela não estivesse com as costas de fora. Eu tenho fetiche por costas. Não é tão ruim assim, algumas pessoas gostam de pés! Eu gosto de costas! "Oi, nunca te vi por aqui." Não isso soaria ridículo demais. Sorri ao me imaginar dizendo. Então pensei em perguntar se ela sabia onde ficava a sessão de "álbuns para idiotas em potencial", mas fiquei com medo de a resposta ser "é aquela ali à esquerda" ou algo do gênero. Me limitei a olhar para Hatful of Hollow com curiosidade e deixar ela notar. Funcionou.
      - Gosta deles? - ela perguntou indiferente.
      - Um pouco. - mostrei o álbum do Scorpions que segurava em uma mão e o do Pink Floyd na outra- Faz mais meu gênero!
      - Hunm. Sabes se eles têm Beirut para vender aqui?
      Eu tinha acabado de vê-lo na outra seção e me questionado sobre que tipo de pessoa ouvia aquele tipo de música. Coincidentemente, ali estava o tipo e, admito, por um momento me pareceu um tipo bom...
      - Acho que está... - fui andando e ela me acompanhou, corri o dedo sobre as estantes e retirei The Flying Club Cup do meio de uns outros álbuns desconhecidos. - Aqui! - Ela o tirou da minha mão e sussurrou cantando:
      - "And outside is warm as a bed with a maid and I find it's all our waves and raves."
      Eu ri!
      - Você deveria ser proibida de cantar! - Falei, fingindo desgosto.
      Ela me olhou e deu um sorriso desgraçadamente desinteressado antes de ir até o caixa. É claro que eu não tencionava continuar a conversa só por causa daquelas costas sexy ou do modo como seus olhos de amêndoa me intrigavam... Ou talvez tenha sido exatamente isso que me impeliu a segui-lá quando ela deixou a loja. De qualquer forma, parece que todo idiota acredita em desígnios e, infelizmente, nunca surpreendi por ser exceção. Deixei os CD's que segurava em cima do balcão e saí apressado.
      - Foi uma piada! - Falei enquanto apressava o passo. Ela olhou para trás.
      - Eu sei! - Sorriu.
      - Estava pensando... - Ela me olhou com curiosidade - se você não gostaria de trabalhar como guia essa tarde.
      - Vindo de onde?
      - Longe!
      Eu não esperava que ela aceitasse tão facilmente, mas depois de umas duas horas de conversa solta notei que rotina não fazia muito o gosto dela e mesmo uma pequena aventura numa tarde de sábado qualquer vinha a calhar. Ela me levou a um parque, um desses parques que só cidade grande tem, mas é bem provável que o fato de eu não ter dado a mínima para o lugar tenha a ver com o modo como os olhos dela acompanhavam o riso, que vinha fácil. Tinha um humor lunático, um mundinho particular e uma coleção de músicas estranhas. Deitar sobre a grama com os pés descalços era um de seus passatempos favoritos.
      - Eu não vou deitar aí!
      - Então fique de pé!
      E lá estava eu sob uma daquelas árvores grandes que eu nunca soube o nome, falando sobre estradinhas de chão e tipos de vinho. Ela era excêntrica como as folhas balançando forte só por vaidade, mas doce como a chuva fina a espalhar cheiro de terra cantando uma canção. Era estranho, olhar dentro de seus olhos e enxergar tudo o que eu desejava. À nossa volta, senti como se o resto do lugar fosse uma realidade à parte invejando nosso momento ímpar. Mas talvez isso seja apenas a minha mania de poetizar o que realmente aconteceu se manifestando novamente. O fato é, que sempre que me lembro, a reminiscência traz consigo um sorriso! Mas daí chega naquele ponto, quando já caía a tarde. E o sorriso amarga.
       A cidade silenciava à medida que o tempo passava ligeiro. Fomos tomar um cappuccino daqueles de máquina em uma lanchonete que, segundo ela, não costumava ser frequentada por turistas por ser pouco conhecida, apesar de ser uma das melhores da região. E, por um momento, enquanto eu passava o dedo sobre a borda da xícara ouvindo-a falar sobre cinema e sonhos de travesseiro, a  voz dela soou como uma chance de eu ser feliz. E o sorriso dela, meio sem graça, parecia desenhar ventura. Pode ser que seja assim, quando a gente se distrai; nada de pretensões ou expectativas, ironicamente, o coração relaxa e deixa vir. Ela era tranquila, não precisava preencher todo silêncio com qualquer coisa banal e tinha aquele olhar indiscreto, mesmo quando sutil, que mostra a alma. Ela era assim. E eu um completo imbecil.
      - Preciso ir ao toilette. - falou fazendo um biquinho francês propositalmente engraçado enquanto levantava. Sorrimos. Ela virou as costas e sumiu ao final de um corredor.
      É aquela velha história de pessoa certa, ideal ou a metade da sua laranja que os livros narram e as músicas cantam. Os menos poetas até afirmam que isso não existe, mas no fundo mesmo, é o que passam a vida toda perseguindo. O fato é que você até encontra a pessoa de suas idealizações, aquela que compartilha dos seus sonhos mais insanos. Até tromba com ela em uma esquina ou padaria qualquer. Mas ela te vira as costas e você a deixa ir, porque o momento é que não é propício. Afinal, você já tem coisas demais com o que se preocupar. Afinal, correr riscos... Afinal, quem garante... Afinal. Afinais!
A-finais... que não permitem começos.
      Então, convenci-me de que a situação e o momento eram os piores possíveis e assim acalmei minha efusão de desejos. Afastei a cadeira com um barulho desnecessário, talvez esperasse que ela voltasse correndo para me impedir. Mas ela não veio. Deixei o dinheiro sobre a mesa, junto com um bilhete. Abri a porta e entrei na noite que subitamente pareceu congelar-me. Um dia eu poderia voltar, procurá-la. Quando minha vida se ajeitasse, entende? Um dia, diferente desse...
      - Táaaxi!      
      Àquela hora, haveria ônibus para fora da cidade?
     
       
     Cidades e cidades depois, anos já se passaram. E nunca na vida eu pude sentir, um minuto sequer, a certeza de um momento ideal. Quantas vezes eu já me peguei, com os olhos fixos em um objeto qualquer ou em alguma moça de olhos de amêndoas, tentando imaginar o que eu nunca saberei; qual terá sido a reação dela ao chegar à mesa. As xícaras vazias, o dinheiro sob o porta-guardanapos brega e o bilhete rabiscado ligeiro sobre um deles. "Obrigado, pelo breve outono."

10 comentários:

  1. Meu deus! Perfeito! Fico impressionado como seu texto me amarra, falo descaradamente que sou seu fã e não há como dizer o contrário.
    Aliás, aquela ideia do livro... por favor, diga que sim! E já sabes, quero ver aquela foto desta semana, que comentei no Facebook, ilustrando o verso, seguido por sua bio.
    Belíssima composição Angelica, genial! Parabéns por mais uma postagem incrível.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu só tenho motivos para me sentir lisonjeada com um fã-escritor como você! E se Deus quiser, um livro é um desejo que eu tenho sim, mas ainda tenho muito para aprender, para crescer... Obrigada, pelos elogios, pelo apoio! E se meus textos continuarem agradando gostos como o seu, eu saberei que estou indo pelo caminho certo!

      Excluir
  2. Obrigadíssimo Angelica Pelo "breve outono" !! Que venham mais!

    ResponderExcluir
  3. Adorei o texto. Aliás, adoro esses textos que narram encontros e desencontros e terminam deixando um gosto de melancolia na alma. As relações humanas são cheias desses pensamentos e sentimentos às vezes indizíveis, apenas compreensíveis em textos como esse: densos e carregados daquilo que gostaríamos de ter vivido. Afinal, quem nunca viu alguém na rua, na loja, no ônibus e não se arrependeu por toda a vida por deixá-la ir, para nunca mais encontrar?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que ótimo! Obrigada por ler e obrigada, principalmente, por fazer parte dos que com palavras me animam a continuar escrevendo.

      Excluir