terça-feira, março 27, 2012

Daqueles sopros que me fizeram ficar


Eu tenho sopros de certeza.
Assim, por serem leves, um estalar de dedos.
No resto do tempo, é bem provável que eu me limite a apenas duvidar.

       Nós nos conhecemos nessa exposição cultural, eu sentada na primeira fileira e ele tocando violino. Nunca entendi nada de música, nem mesmo o que ela me faz sentir. Mas entendo de poesia e era o que ele parecia estar fazendo naquele pequeno palco. Enquanto o assistia, ele parecia oscilar entre o suave e o agressivo. Entregava-se. Delineava um mundo só dele. Deleitava-se. Feria-se. No entanto, isso era como eu o via, talvez eu estivesse apenas me deixando levar por aqueles olhos malditos, que, vulgarmente, pareciam liberar sua essência. Achei que nunca fosse realmente saber, mas eu estava certa; a música era a maneira que ele havia encontrado para se manter respirando, fui descobrindo isso aos poucos... Enquanto iam-se as estações.
       Era inverno, bom para se deixar levar enquanto o sol se levanta lá fora. Cálido. Eu o olhava brincar com o meu travesseiro e brincava bagunçando seu cabelo sem corte, e assim ele ia me contando o sonho que tivera a noite.
       - É sempre o mesmo sonho, tem essa casa de madeira no meio dessa clareira. É noite e eu posso ver luzes acesas dentro da casinha vermelha. E eu tenho que atravessar o pequeno lago para chegar até ela, mas não tem barco e no sonho eu não sei nadar; começa chover e, então a nevar, o lago congela. Logo eu sinto o frio sob meus pés, olho para baixo e estou descalço. Então o lago parece nunca ter fim, eu ando, ando, ando e só depois de muito tempo eu consigo chegar ao outro lado. A porta da casinha se abre e é nessa hora que o sonho desvanece, não sei se acaba, se não consigo lembrar... não sei...
       Naquele momento, era só com ele que eu desejava estar. Ali, conversando com os seus lábios, compartilhando seus delírios. Eu sabia. Eu tinha certeza. Soprou. Doce como o vento fresco que ondulava a seda leve da cortina.
       - Você nunca havia me contado... desse sonho.
       - Não...
       - Você acha que significa alguma coisa?
       Ele olhou para cima, angustiado.
       - Não sei... Sempre acontece assim, e eu acordo com essa nostalgia, essa ausência... É estranho dizer. É estranha a sensação. Mas eu queria entender...
       - Está tudo bem, é só um sonho. - Sorri
       - Eu nunca havia contado isso a ninguém...
       E eu me sentia feliz, só por estar ali, só por aquele momento. Àquela hora, nada mais parecia importar, porque então ele foi dizer? Porque ele foi pronunciar aquela última e maldita frase? Tudo parecia estar indo tão bem, como eu desejava que estivesse. Até que ele me fez estremecer: "Eu nunca havia contado isso a ninguém..." Simples assim e o suficiente para me tirar da estática, da inércia doce dos meus pensamentos. De repente, eu me dei conta de que aos poucos eu me envolvia em sua vida, aos poucos eu estava me deixando levar por esse abismo de incertezas, que são as pessoas. Quando há alguém ocupando espaço na sua vida, nas suas histórias, tudo fica pouco seguro. E, então, isso de formar laços com as pessoas, aproximar-se delas... Eu pensava demais! Eu sempre penso demais.
       E embora a minha vontade de ter ele ao meu lado parecesse se justificar cada vez que ele abria um sorriso, o medo do que eu iria encontrar na casinha de madeira, me fez titubear. Eu queria atravessar o lago, como ele tivera coragem de fazer; mas aí eu desejava encontrar uma lareira e um chá quentes a minha espera e não havia nada que me garantisse não estar penetrando fundo demais em um terreno perigoso... E se no meio do lago, o gelo se partisse? E se a porta se abrisse e, então, decepção? Não, eu não poderia me dar o luxo do desconhecido, do incompreensível. Como é isso de amar e suas consequências. Era melhor voltar para a segurança. Tranquilidade. Covardia.
       - Está tudo bem?
       - Hã? - eu não havia escutado
       - Perguntei se está tudo bem.
       - Está, está. - respondi - Sinto frio. Feche a janela, por favor, estou exausta.
       Virei para o lado. Logo sonhava com uma casinha de madeira, um lago congelado e uma estradinha de pedra. Luzes se projetavam pelas cortinas pesadas postas às janelas, era noite. Virei as costas, a estradinha parecia mais segura, era a mesma por onde eu havia chegado ali, não era? De qualquer forma, pelo menos parecia não haver ninguém nela. Dei o primeiro passo. Nostalgia, ausência. Estranha sensação, dissera ele; entendi.

       Eu tenho sopros de certeza. Passageiros. O resto do tempo, eu me limito a duvidar. Mas eu tenho paciência, também, esperaria por outros - como havia feito todas as outras vezes - outros sopros, outras felicidades. E se no sonho eu fui embora, nostálgica, ali eu ficaria; mais uma vez. Porque cada momento desses, cada breve instante de certeza, valia o meu mundo. Mantinha-o de pé. Valia cada pena, cada dose amarga de dúvida. Me punha suave, deleitava-me. Valia por tudo. Valia por teu olhar.



       

4 comentários:

  1. Eu aqui, atrasada pra faculdade, de repente vc posta um texto desses... ASSIM NÃO DÁ PRA ESTUDAR!

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  2. Sensacional! Sopros de certeza é o que temos, pois a certeza, aos olhos dos sábios, logo se esvanece em alguma outra dúvida. E nada pode trazer mais dúvidas do que o outro. E o que dizer dos sonhos?
    Essa narração do sonho foi fantástica, Angélica. E é assim: nos colocamos a buscar entender o que os outros escondem em sua cabana no meio de uma clareira, mas muitas vezes somos decepcionados antes mesmo de lá chegar.
    Genial! Amei seu texto!
    Beijos do seu fã!

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    1. Obrigada, Eduardo! Me sinto honrada de tê-lo como fã como dizes. Obrigada mesmo pelo apoio, por sempre ler e comentar. Fico muito feliz, de verdade!

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