quarta-feira, junho 20, 2012

Deve-se estar por aí

          Um certo burburinho de ventos, que se iam, iam, iam. E o que ficava era a sua falta, ânsia e a sonolência do vazio. Maldição de Ondina. E junto ele se ia, ia, ia; era um deixar-se levar pelo sufoco do nada. E ele se deixou, fácil que era o fechar dos olhos. À pouca luz, as sombras dançavam bêbadas frente às suas pálpebras cerradas. De razão. De querer saber. É isso, abandou-se a si mesmo. Ao seu eu-ser. E sobre a sua verdade tão defendidamente sólida, construiu um castelo de areia, tão infiel e leve. Somaram-se a isso duas ou três frases de efeito e um eu metafísico que se sobrepunha, arrogante, a qualquer lugar comum. Amou a fé em si e esqueceu-se de amar. Amou quão fácil é não amar.
          Em busca de ser densamente leve (como adorava as contradições!) pendeu para o centro, onde odiava estar; bem perto de não entender, bem perto de se perder. Linha tênue que se rompeu: perdeu-se. E por ali, por ali bem próximo acreditava estar. Próximo de tudo como imaginava o mundo; o real. Das coisas que mais detestava experimentou. E foi se indo, indo, indo, para bem mais longe de si. Desconheceu-se, renomeou-se. Um alterego; ria-se dessa piada entre uvas de vinhos bons e Whiskys caros regados a danças frenéticas e gosto de cigarro. Era ironia, atuação. Experimentação pseudo-deleitadamente mórbida. Sórdida. Era tão fácil ser vil, incoerente e cego. Fácil ser incrédulo, quem dirá cáustico. E era tão intensamente fácil, fácil fingir ser fácil.
          Ah, que bobagem: de sorrisos afetados trejeitou sua face, de gestos triviais e recursos vulgares pontuou sua vida. E o tempo o levava, não havia piedade. E ele se deixava ir, só por ser mais fácil. E se ia, se ia. Frio como o inverno de julho. Insensível como o é todos os espíritos pequenos. Armou-se contra o mundo e dasalmou-se. Sucumbiu em si, no seu espectro vazio. Reconheceu-se em poemas, na fobia do claustro. Lá os ventos se iam, a respiração era falha. Sonolência do vazio e ângustia. Até que finalmente num grito silencioso e esgar: Clemência Ondina!
          Os ventos o ouviram. Houve, então, certo burburinho, burburinho que se vinha, que se vinha; ventania. Seu castelo infiel, leve, ruiu-se. A poeira subiu e algo roçou seus olhos. Era o passado. O passado a desviá-lo da rota, achou um tormento; duvidou. As pálpebras tremeram, não queria abrir os olhos, retirar-se de si. "Onde está si?", lhe perguntaram. "Está bem aqui em eu", afetou-se o riso. "Ora, pois! Eu vamos! Eu  quero nos levar... há mais luzes lá fora, abra estes olhos, eu. Há mais luzes ali, bem perto, bem perto de eu." O passado não queria esquecer-se. Pouco difuso. "Há mais luzes? Lá fora...", perguntou inseguro. "Ah, eu, olhemos! Vamos levar-nos para voltar a ser criança, para crescer em sermos. Para encantarmos novamente nossos olhos.", respondeu a voz que vinha de longe, que levantava a poeira, que não queria mais se fazer muda e tola. As pálpebras tremeram, sujeitaram-se, abriram!
          Pouco a pouco recomeçou a ver-se, um poeta da simplicidade! Não um eu-cinza enfadado do mundo, como se personificara há tanto. Não, não. Que era aquilo tudo que ele via? Não era novo, apenas (des)costume. E isso era bom, como havia esquecido? De fazer mágica dessa vida, tão absurda, tão completamente absurda... e doce. Doce na medida de um torrão de açúcar para desamargar o café. Ah, o café. Como o havia trocado? Era tão bom estar sóbrio para a vida novamente. E de canções de amor encheu-se os ouvidos e de luzes cor de cristal sob o céu encheu-se os olhos. Todas as cores, todas as cores do arco-celeste. Miríades de bons sorrisos e abraços de velho querido. O pai de toda a mágica lhe sorria, bem a sua frente, bem a sua frente! Como pode cegar-se? "Ei, vamos?", era a voz que agora se fazia presente. E ele foi. Decidido e enfático: "Eu vamos!" Encontrou-se.
          Há quanto havia se perdido de si, por dar-se sempre razão, por achar saber. Que arrogância! Era possível, então, fazer-se ser o que não se é. Malditamente possível! Mas reaprendeu a amar. Pendeu para um dos extremos, que era onde mais gostava de estar: o do intenso gozo da beleza que é viver. E riem-se os desentendidos, os loucos e profanadores dos risos, riem-se os não despertos, os coxos de esperança e os adultos de tudo. Riem-se e riem-se. E ele os deixa rir e ri-se, também. Desarmara-se contra o mundo, almara-se! Lá estava ele agora, lá dentro de si. Inchara-se do que é. Que as chuvas trouxessem bons ventos aos outros, desejava. Que lavassem suas almas e levassem leves seus castelos. Que as luzes se fizessem intensas e que assim sumissem as bêbadas sombras. Que tudo não fosse só pragmatismo! Porque sentir, diz Fernando Pessoa, "sentir é compreender". Nossa realidade são as sensações. Efêmeras! Então que eles sentissem, mais do que acreditassem saber!
          Dane-se a dose de utopia! Quem dirá seu parco entendimento! Acredite se quiser. "A verdade não é nada. O que você acredita ser verdade é tudo." E essa, essa é apenas a história de um sujeito que era assim e depois assado e que na tentativa pretenciosa e egocêntrica de ver-se (e somente a si), acabou por perder-se de si mesmo. Então andava por aí a procurar-se, embora não soubesse que andava bem longe. Até que numa noite dessas, dessas noites quaisquer, trombou-se; com ele mesmo. Incógnito. E, num diálogo estranho de seis ou sete frases, reconheceu-se fora de si. "Há mais luzes lá fora", disse encostado no parapeito da janela, "que eu já nem lembrava que existiam!"


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