Um certo burburinho de ventos, que se iam, iam, iam. E o que ficava era a sua falta, ânsia e a sonolência do vazio. Maldição de Ondina. E junto ele se ia, ia, ia; era um deixar-se levar pelo sufoco do nada. E ele se deixou, fácil que era o fechar dos olhos. À pouca luz, as sombras dançavam bêbadas frente às suas pálpebras cerradas. De razão. De querer saber. É isso, abandou-se a si mesmo. Ao seu eu-ser. E sobre a sua verdade tão defendidamente sólida, construiu um castelo de areia, tão infiel e leve. Somaram-se a isso duas ou três frases de efeito e um eu metafísico que se sobrepunha, arrogante, a qualquer lugar comum. Amou a fé em si e esqueceu-se de amar. Amou quão fácil é não amar.
Em busca de ser densamente leve (como adorava as contradições!) pendeu para o centro, onde odiava estar; bem perto de não entender, bem perto de se perder. Linha tênue que se rompeu: perdeu-se. E por ali, por ali bem próximo acreditava estar. Próximo de tudo como imaginava o mundo; o real. Das coisas que mais detestava experimentou. E foi se indo, indo, indo, para bem mais longe de si. Desconheceu-se, renomeou-se. Um alterego; ria-se dessa piada entre uvas de vinhos bons e Whiskys caros regados a danças frenéticas e gosto de cigarro. Era ironia, atuação. Experimentação pseudo-deleitadamente mórbida. Sórdida. Era tão fácil ser vil, incoerente e cego. Fácil ser incrédulo, quem dirá cáustico. E era tão intensamente fácil, fácil fingir ser fácil.
Ah, que bobagem: de sorrisos afetados trejeitou sua face, de gestos triviais e recursos vulgares pontuou sua vida. E o tempo o levava, não havia piedade. E ele se deixava ir, só por ser mais fácil. E se ia, se ia. Frio como o inverno de julho. Insensível como o é todos os espíritos pequenos. Armou-se contra o mundo e dasalmou-se. Sucumbiu em si, no seu espectro vazio. Reconheceu-se em poemas, na fobia do claustro. Lá os ventos se iam, a respiração era falha. Sonolência do vazio e ângustia. Até que finalmente num grito silencioso e esgar: Clemência Ondina!
Os ventos o ouviram. Houve, então, certo burburinho, burburinho que se vinha, que se vinha; ventania. Seu castelo infiel, leve, ruiu-se. A poeira subiu e algo roçou seus olhos. Era o passado. O passado a desviá-lo da rota, achou um tormento; duvidou. As pálpebras tremeram, não queria abrir os olhos, retirar-se de si. "Onde está si?", lhe perguntaram. "Está bem aqui em eu", afetou-se o riso. "Ora, pois! Eu vamos! Eu quero nos levar... há mais luzes lá fora, abra estes olhos, eu. Há mais luzes ali, bem perto, bem perto de eu." O passado não queria esquecer-se. Pouco difuso. "Há mais luzes? Lá fora...", perguntou inseguro. "Ah, eu, olhemos! Vamos levar-nos para voltar a ser criança, para crescer em sermos. Para encantarmos novamente nossos olhos.", respondeu a voz que vinha de longe, que levantava a poeira, que não queria mais se fazer muda e tola. As pálpebras tremeram, sujeitaram-se, abriram!
Pouco a pouco recomeçou a ver-se, um poeta da simplicidade! Não um eu-cinza enfadado do mundo, como se personificara há tanto. Não, não. Que era aquilo tudo que ele via? Não era novo, apenas (des)costume. E isso era bom, como havia esquecido? De fazer mágica dessa vida, tão absurda, tão completamente absurda... e doce. Doce na medida de um torrão de açúcar para desamargar o café. Ah, o café. Como o havia trocado? Era tão bom estar sóbrio para a vida novamente. E de canções de amor encheu-se os ouvidos e de luzes cor de cristal sob o céu encheu-se os olhos. Todas as cores, todas as cores do arco-celeste. Miríades de bons sorrisos e abraços de velho querido. O pai de toda a mágica lhe sorria, bem a sua frente, bem a sua frente! Como pode cegar-se? "Ei, vamos?", era a voz que agora se fazia presente. E ele foi. Decidido e enfático: "Eu vamos!" Encontrou-se.
Há quanto havia se perdido de si, por dar-se sempre razão, por achar saber. Que arrogância! Era possível, então, fazer-se ser o que não se é. Malditamente possível! Mas reaprendeu a amar. Pendeu para um dos extremos, que era onde mais gostava de estar: o do intenso gozo da beleza que é viver. E riem-se os desentendidos, os loucos e profanadores dos risos, riem-se os não despertos, os coxos de esperança e os adultos de tudo. Riem-se e riem-se. E ele os deixa rir e ri-se, também. Desarmara-se contra o mundo, almara-se! Lá estava ele agora, lá dentro de si. Inchara-se do que é. Que as chuvas trouxessem bons ventos aos outros, desejava. Que lavassem suas almas e levassem leves seus castelos. Que as luzes se fizessem intensas e que assim sumissem as bêbadas sombras. Que tudo não fosse só pragmatismo! Porque sentir, diz Fernando Pessoa, "sentir é compreender". Nossa realidade são as sensações. Efêmeras! Então que eles sentissem, mais do que acreditassem saber!
Dane-se a dose de utopia! Quem dirá seu parco entendimento! Acredite se quiser. "A verdade não é nada. O que você acredita ser verdade é tudo." E essa, essa é apenas a história de um sujeito que era assim e depois assado e que na tentativa pretenciosa e egocêntrica de ver-se (e somente a si), acabou por perder-se de si mesmo. Então andava por aí a procurar-se, embora não soubesse que andava bem longe. Até que numa noite dessas, dessas noites quaisquer, trombou-se; com ele mesmo. Incógnito. E, num diálogo estranho de seis ou sete frases, reconheceu-se fora de si. "Há mais luzes lá fora", disse encostado no parapeito da janela, "que eu já nem lembrava que existiam!"
Parabéns. ótimo texto.
ResponderExcluirainda me pego conversando com meu eu presente ou com meu eu futuro!!!!
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